O menino de 10 anos se surpreende com a própria respiração. Puxa fundo o ar e solta, maravilhado:
— Mãe, olha só!
Até o mês passado, Arthur Maurell Gonçalves dos Santos, 10 anos, respirava curtinho, tossia muito, tinha crises de vômito, até três vezes ao dia, por uma secreção espessa. Diagnosticado aos cinco meses com fibrose cística (também conhecida como mucoviscidose), doença genética que deteriora o pulmão, passou a vida sofrendo com repetidas infecções e internações hospitalares. Transplantado, começa a descobrir as sensações mais simples e prazerosas.
Natural do Rio de Janeiro, a família não se conformou com as limitações de perspectivas no centro de referência que atendia a criança e procurou alternativas até chegar à Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, cidade para onde Arthur e a mãe, a advogada Lise Maurell, 41 anos, mudaram-se no início de 2020. O pai, o farmacêutico Flavio Gonçalves dos Santos, 45 anos, ficou trabalhando em Saquarema (RJ) e visitava periodicamente — com a pandemia, foram seis meses sem encontros presenciais.
— Eu caía e levantava. Não desisti do Arthur. Não acredito em desistir — relembra Lise, referindo-se ao estado de permanente vigilância e dedicação ao tratamento do filho que enfrentou por uma década.
O telefonema tão aguardado foi feito pelo pneumologista Douglas Nascimento, coordenador clínico do serviço de transplante pulmonar da Santa Casa, às 23h30min de 22 de outubro. Aparecera o doador. Lise acordou Arthur:
— Filho, chegou o seu dia!
O procedimento de grande porte, com 10 horas de duração, foi conduzido pelo cirurgião torácico J.J. Camargo no Hospital da Criança Santo Antônio. Trata-se do primeiro transplante pediátrico de pulmão realizado na instituição desde 2019. Esse tipo de operação costuma ser intervivos, com partes do órgão retiradas do pai e da mãe, por exemplo, dada a difícil compatibilidade de tamanho entre doadores e receptores. As restrições da pandemia, com o sistema de saúde sobrecarregado com as demandas da covid-19, também atrapalharam a realização de transplantes.
No momento em que seus pais avaliavam a viabilidade de serem os doadores, Arthur se beneficiou da autorização para doação concedida pelos familiares de uma criança que sofreu morte encefálica.
Internado, Arthur se submeteu à operação na manhã seguinte ao aviso do médico que vinha acompanhando o garoto ao longo da espera. Tudo transcorreu bem. Quando despertou da sedação na UTI, o paciente indagou à mãe:
— Agora eu vou poder ir para a escola, né?
Lise garantiu que sim, e o filho insistiu por detalhes:
— Mas quando?
A fibrose cística é multissistêmica, afetando mais de um órgão, sendo o principal deles o pulmão. Arthur está, a partir de agora, livre da enfermidade pulmonar. A alta ocorreu na última terça-feira (16). Seguem-se, daqui por diante, os cuidados pós-transplante, com fisioterapia respiratória e imunossupressores. O menino deve evitar se expor a poluição e pessoas com doenças infectocontagiosas, explica Nascimento.
Os próximos três meses exigirão muita atenção, com consultas semanais ou quinzenais, além dos demais compromissos no complexo hospitalar. Nesse período, Lise e Arthur permanecerão na Capital.
— As perspectivas são muito boas. Esses pacientes não crescem, não se desenvolvem, e costumam ter um desenvolvimento acelerado com o transplante. Eles não tiveram uma infância com brincadeiras, com corrida, e aí recuperam essa chance agudamente. Ficam alucinados — comenta, satisfeito, Camargo, que realiza transplantes pulmonares há 32 anos.
Arthur quer viajar, conhecer os parques da Disney e do Beto Carrero. Lise, que foi também professora do filho, alfabetizando-o e monitorando em casa as atividades das aulas que ele poucas vezes pôde assistir, mal acredita quando ele lhe dá um bom-dia com beijo e abraço ao sair da cama. Pensa no grande quintal da casa em Saquarema que a criança nunca pôde aproveitar – cansava em minutos e ia para o sofá.
— Eu sei que ainda tem muita coisa pela frente, mas estou conseguindo vê-lo acordar sem vomitar. Ele senta à mesa e toma café comigo. Estou descobrindo o lado normal da vida. Isso é mágico — emociona-se a advogada na entrevista, mencionando inúmeras vezes como foi bem acolhida pelos profissionais da Santa Casa.
Questionada se a experiência poderia ser descrita como a sensação de assistir ao renascimento do filho, Lise reflete:
— Não sei se é renascimento ou se é o primeiro nascimento.