A nutricionista Tânia Manske, 50 anos, convive há mais de três décadas com a mielopatia genética, uma doença grave na medula que provoca a perda dos movimentos do corpo. Desde 2015, a gaúcha de Santa Cruz do Sul conta com o auxílio de uma cadeira especial para se locomover e de um colete ortopédico para estabilizar a coluna vertebral. Tânia está entre os muitos gaúchos que são beneficiados pela chamada tecnologia assistiva, ramo da ciência que visa criar inovações para facilitar a vida de pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade reduzida.
— No início da minha doença, não havia recursos. Era tudo muito difícil. Com o passar dos anos, os aparelhos começaram a ser adaptados conforme a necessidade de cada pessoa. Fico muito feliz por isso. A evolução é muito grande comparada a 30 anos atrás — afirma a nutricionista.
O conceito de tecnologia assistiva é amplo: engloba recursos, aplicativos equipamentos, serviços, metodologias e estratégias com o objetivo de proporcionar autonomia e bem-estar a pessoas que tem algum tipo de deficiência. É considerado um recurso de tecnologia assistiva qualquer item ou equipamento fabricado ou adaptado para melhorar capacidades funcionais dos indivíduos e a sua qualidade de vida. Utilizando esses instrumentos, pessoas com deficiência conseguem realizar atividades do dia a dia como se alimentar, escrever, segurar objetos ou se maquiar.
Uma das iniciativas que tornam o Estado referência nacional na área são pesquisas desenvolvidas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mas o coordenador do programa de pós-graduação em Design, Fábio Pinto da Silva, faz um alerta:
— O RS é muito forte na área de tecnologia assistiva, e a UFRGS é um polo reconhecido nacionalmente.
A demanda no setor está em ascensão, mas infelizmente os investimentos públicos estão em declínio. Nos últimos anos, as pesquisas na área decorrem de iniciativas de professores e alunos, e não de um programa governamental.
Uma das pesquisas mais relevantes em andamento na universidade, de acordo com o professor, é em parceria com o Hospital Moinhos de Vento e desenvolve próteses externas de silicone para mulheres mastectomizadas. O corpo de mulheres que retiraram uma das mamas é digitalizado em 3D e este material guia a criação de moldes personalizados.
O plano é entregar cinco próteses até o final do ano e manter um acompanhamento das participantes.
— Com base na digitalização, projetamos uma mama para o lugar da que foi removida. Imprimimos moldes em 3D e fazemos uma prótese de silicone que pode ser usada no sutiã, feita em tamanho personalizado e pensada para encaixar no corpo de cada mulher, já que a área mastectomizada não é lisa, tem cicatriz. Esta ação se encaixa na ideia de tecnologia assistiva pois traz bem-estar ao indivíduo — afirma Fabio.
A pós-graduação em design também trabalha na criação de um modelo mais inclusivo de experiência em museus para pessoas cegas. Um estudo desenvolveu réplicas de obras que podem ser tocadas pelos visitantes e que, conforme a área manuseada, disparam uma audiodescrição da peça, de seus materiais e sua história.
Detalhe GZH
Esta reportagem nasceu do trabalho de conclusão de Bruna Rodrigues de Oliveira, aluna de Jornalismo na Unisc, no projeto Primeira Pauta RBS 2021.
A tecnologia também é destaque no interior gaúcho, por meio da iniciativa privada. Um projeto iniciado em 2013 pela empresa Mercur, em Santa Cruz do Sul, convidou pessoas com deficiência (PCDs), mobilidade reduzida, familiares, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, médicos e designers para participar de reuniões na empresa e cocriar uma linha de produtos voltada a facilitar as atividades de vida diária.
— Uma senhora um dia nos falou que desejava conseguir voltar a varrer. Ela tinha perdido o movimento de um dos lados do corpo e não conseguia mais segurar a vassoura com as duas mãos. Com uma das tiras fixadoras que desenvolvemos, feita em borracha, ela pôde adaptar o cabo da vassoura para colocar as mãos e fazer o movimento de varrer — diz Fabiani Spiegel, analista de relacionamento da Mercur.
Hoje, a linha conta com equipamentos como fixadores, engrossadores, pulseiras de peso, cintas protetoras e materiais escolares adaptados, que podem auxiliar idosos, PCDs e indivíduos que sofreram AVC, entre outras condições. Desde 2019 a empresa disponibiliza a instituições de assistência espalhadas pelo RS as chamadas “Caixas de experimentação de Facilitadores de Atividades de Vida Diária”.
Os kits têm cerca de 30 recursos de tecnologia assistiva e ficam à disposição de profissionais de fisioterapia, pedagogos e outros para que experimentem o que funciona melhor para a necessidade do paciente. As caixas estão disponíveis em 20 municípios: Bento Gonçalves, Farroupilha, Caxias do Sul, Garibaldi, Nova Petrópolis, Gramado, Portão, Novo Hamburgo, Porto Alegre, Lajeado, Santa Cruz do Sul, Casca, Erechim, Passo Fundo, Santa Maria, Alegrete, Pelotas, Rio Grande, Cachoeirinha e Gravataí. Nas mesmas cidades, há lojas parceiras que comercializam os produtos da caixa de experimentação. A lista de instituições participantes e seus endereços está disponível em gzh.rs/mercur.
– É um mercado novo. Ainda há dificuldade de encontrar os produtos em razão de muitos serem importados e acabam se tornando caros, mas é uma área em ascensão. As vendas vêm aumentando e inclusive dobraram no mês de setembro – relata Fabiani Spiegel.
Os produtos podem ser adquiridos via site e entregues em todo o Brasil. Alguns dos aparelhos são oferecidos de forma gratuita no Sistema Único de Saúde (SUS). Uma comissão avalia a disponibilidade dos itens e sua necessidade.
No ensino e na prática
As ferramentas podem ser digitais ou objetos simples como um suporte, uma bengala. Em Bento Gonçalves, na serra gaúcha, o Centro Tecnológico de Acessibilidade (CTA) do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), em funcionamento desde 2013, se dedica desenvolver pesquisas e soluções em acessibilidade. No site do CTA é possível encontrar, dentre diversos manuais e tutoriais, conteúdos sobre como adaptar um mouse para pessoas que tem dificuldade para clicar e como facilitar a escrita para indivíduos que não conseguem segurar objetos de espessura fina (como canetas, lápis), utilizando discos de EVA para engrossá-los.
De acordo com a coordenadora do centro, Bruna Poletto Salton, uma das frentes da instituição é pesquisar e desenvolver tecnologias de baixo custo, voltadas principalmente à área do ensino, de modo a atender melhor estudantes que têm necessidades educacionais específicas. Os achados são compartilhados com demais instituições de ensino do país e também aplicados aos próprios alunos do IFRS.
– Fazemos uma avaliação para verificar atividades que o aluno tem dificuldade em realizar e se ele poderia se beneficiar do uso de um recurso assistivo. A partir daí oferecemos materiais e ferramentas digitais específicos, alguns deles desenvolvidos pelo próprio CTA. Muitas vezes o que é necessário são adaptações simples, como criar um suporte para o teclado de um estudante que tem mais facilidade para digitar se o equipamento estiver inclinado. Outras vezes os recursos são digitais, como a implementação de um leitor de tela para um aluno cego, ou uma ferramenta de ditado para alunos que conseguem falar, mas não conseguem digitar – afirma Bruna.
O CTA oferece dois cursos online gratuitos, voltados a professores e profissionais que trabalham com pessoas que tem deficiência. Tecnologia Assistiva no Contexto Educacional é um curso com carga horária de 60 horas e Possibilidades para a fabricação digital de recursos de Tecnologia Assistiva de Baixo Custo tem 40 horas, sendo que ambos oferecem certificação. Estão disponíveis nos links gzh.rs/CTA-1 e gzh.rs/CTA-2.
Ao longo do primeiro semestre de 2022, o instituto também lançará o Repositório de Tecnologia Assistiva no Contexto Educacional (Retace), ambiente digital aberto que reunirá conteúdos sobre pesquisas, metodologias e tutoriais de equipamentos de TA. A plataforma também estará disponível para que outras instituições publiquem seus estudos e compartilhem descobertas.