Com o avanço da variante Delta da covid-19 no Brasil e o gradual aumento de hospitalizações em diferentes regiões, incluindo Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, uma nova discussão divide especialistas e governos: para conter a piora da epidemia, é melhor aplicar a terceira dose em idosos ou finalmente vacinar adolescentes?
A eventual aplicação da terceira dose já era esperada por cientistas, mas o dilema surge em aplicá-la agora, com escassez no mercado - hoje, apenas adolescentes com comorbidades podem ser imunizados em alguns Estados. Em Porto Alegre, a campanha chegou à população com 18 anos nesta segunda-feira (23).
Não há consenso sobre a melhor saída - de quatro imunologistas e infectologistas ouvidos por GZH, dois são a favor da terceira dose em idosos e dois, contra neste momento. De modo geral, o argumento a favor de aplicação nos mais velhos é a expectativa de protegê-los contra o risco de morte. Contra, está a constatação de que faltam evidências robustas para a decisão, algo reconhecido por todos.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) é contra a terceira dose para que ingredientes da indústria cheguem a países pobres onde sequer 2% dos habitantes foram imunizados. Mas o apelo vem sendo ignorado por alguns países, que passaram a aplicar a terceira dose em quem recebeu qualquer tipo de vacina.
Israel e Chile já adotaram a medida, países como Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, França e Alemanha anunciaram a terceira dose para setembro, assim como a prefeitura do Rio de Janeiro. O Estado de São Paulo também estuda aplicar terceira dose.
O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, afirmou na semana passada que a terceira dose deve ser aplicada no Brasil em idosos e imunodeprimidos (como transplantados ou pessoas com câncer), mas apenas após os maiores de 18 anos terem sido imunizados. Ele não especificou se o reforço ocorrerá para uma vacina específica.
Também na semana passada, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recomendou a terceira dose para idosos e imunodeprimidos vacinados com a CoronaVac. Estudo conduzido pelo médico Júlio Croda, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mostrou que a proteção do imunizante é menor conforme mais velho o indivíduo - a eficácia contra infecções varia de 28% para idosos com mais de 80 anos a 61,8% para pessoas de 70 a 74 anos, patamar ainda acima da proteção oferecida pela vacina da gripe.
Já estudo da Universidade de Oxford mostrou que, três meses após a segunda dose, a eficácia da Pfizer caiu para 75% e da AstraZeneca, para 61%. A avaliação é de que, entre quatro e cinco meses depois da segunda dose, a proteção oferecida pelas duas vacinas será semelhante.
Ainda não há estudos cravando que a terceira dose de qualquer vacina eleve porcentagens de proteção, e sim que aumente, em laboratório, os anticorpos. A SinoVac divulgou estudo apontando que a terceira dose da CoronaVac de seis a oito meses após a segunda injeção pode aumentar em até sete vezes a taxa de anticorpos neutralizantes, responsáveis por bloquear a entrada do vírus nas células.
Ao mesmo tempo, as vacinas também estimulam uma segunda linha de defesa contra a covid-19, a produção de células T. Pesquisas mostram que anticorpos caem com o passar do tempo, mas as células T, também importantes na proteção, se mantêm.
A imunologista Cristina Bonorino, professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e colunista de GZH, é contra a aplicação de terceira dose porque diz não haver estudos provando a necessidade. Aliás, observa, pesquisas apontam que duas doses da Pfizer e da AstraZeneca seguem efetivas contra a Delta.
Uma nova injeção sempre estimula a produção de mais anticorpos, mas o contato com o vírus também estimula a produção de proteínas de defesa, diz Bonorino. No caso da CoronaVac, ela observa que eventual queda de anticorpos não deve afetar a proteção.
— Há dados claros mostrando que não precisa de terceira dose porque, ainda que a resposta com anticorpos fique menos eficaz, a resposta T, que também atua na defesa, não é afetada. A CoronaVac não protege com o estímulo de anticorpos, e sim com linfócitos T. O que o Chile está fazendo é sem nenhuma evidência. Não dá para dirigir um país no achômetro. Quanto mais pessoas não vacinadas, mais vão se contaminar e mais variantes vão surgir — afirma a imunologista.
O médico Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), defende que idosos sejam revacinados antes da primeira dose em adolescentes saudáveis porque os mais velhos correm mais risco de adoecer gravemente.
No entanto, diz que o número de doses a serem recebidas pelo Ministério da Saúde em setembro deve permitir ao menos a terceira dose para idosos acima de 90 anos, imunodeprimidos e adolescentes. O Ministério da Saúde prevê receber 62,6 milhões de doses em setembro, das quais 37,5 serão Pfizer.
Kfouri lembra que o governo federal precisará decidir entre aplicar a terceira dose da mesma vacina ou de outro imunizante. Como os mais velhos foram vacinados com CoronaVac e AstraZeneca, uma terceira dose das mesmas marcas implicaria sobra de Pfizer, a única disponível para adolescentes.
— O que temos lacuna de conhecimento é em relação a qual vacina dar para quem tomou AstraZeneca ou CoronaVac. O Chile decidiu dar Pfizer e bancou. Como vai ser aqui? De toda forma, não precisaremos fazer escolhas até o fim de setembro. Devem ter mais de 60 milhões de vacinas no mês que vem. Dá pra começar o reforço com os primeiros idosos vacinados, acima dos 90 anos. Depois que chegar mais vacina, vai baixando a idade — diz.
Exemplo de Israel
O ministério da Saúde de Israel anunciou neste domingo (22) estudo apontando que a terceira dose da Pfizer aumentou significativamente a proteção contra infecções e casos graves de covid-19 em idosos. A medida começou a ser aplicada em israelenses a partir de 60 anos em 30 de julho.
Para essa população, a proteção contra infecções gerada 10 dias após a terceira dose foi quatro vezes maior do que após duas doses. Já a proteção contra casos graves e hospitalizações foi de cinco a seis vezes maior também 10 dias após a terceira dose. Agora, a terceira dose também está sendo oferecida em Israel para pessoas com mais de 40, grávidas, professores e profissionais de saúde com idade inferior.
A imunologista Viviane Boaventura, pesquisadora da Fiocruz e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), defende aplicar a terceira dose em brasileiros acima dos 80 anos, depois vacinar pela primeira vez adolescentes saudáveis e só então retomar a terceira dose de idosos abaixo dos 80 anos.
— Vale priorizar a faixa etária acima de 80 anos frente a uma faixa etária de 12 anos. É preciso fazer a ponderação. A população mais velha, além da idade, tem comorbidades, então tem um risco de hospitalização muito maior do que jovens. Se temos uma chance de essa população estar novamente exposta, com a Delta, o risco é mais alto. A quantidade de idosos acima dos 80 anos é relativamente baixa — argumenta Boaventura.
O médico Alexandre Zavascki, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e chefe da Infectologia do Hospital Moinhos de Vento, tende a acreditar que o ideal é continuar a vacinação para tentar proteger o maior número de pessoas. Ele afirma que, a despeito de estudos em laboratório mostrarem que a terceira dose estimula o sistema imune, não se sabe se isso de fato se reverterá em redução de internações.
— Idosos estão indo mais para hospital porque há muita circulação de vírus. Mesmo que vacinas não impeçam completamente a circulação da Delta, elas diminuem. É uma decisão difícil. Se colocar entre dar a terceira para idosos e completar a segunda dose em adultos, a prioridade é completar a segunda em adultos, porque o esquema vacinal é de duas doses. A proteção com uma dose é bastante inferior, sobretudo para a variante Delta — afirma.
O que dizem governos
O Ministério da Saúde afirmou por e-mail que realiza estudo para avaliar a necessidade de terceira dose da vacina contra covid-19, sem afirmar se a oferta seria para imunizados com AstraZeneca, CoronaVac, Janssen ou Pfizer.
"A recomendação da pasta é de que os entes federados sigam à risca as estratégias definidas em reunião entre representantes dos estados e municípios para que o esquema vacinal seja completo", diz a nota.
GZH questionou quando a Secretaria de Estado da Saúde do Rio Grande do Sul (SES-RS) começará a vacinar adolescentes no geral. A pasta afirmou que o Ministério da Saúde não deu o aval para fazê-lo e que aguarda instruções e doses para incluir o grupo na campanha.
O Estado também ressalta que, segundo a OMS, "não há justificativa plausível em termos internacionais para priorizar terceira dose enquanto a maior parte da população mundial não estiver vacinada com duas doses".
A SES-RS diz ainda que "ações como terceira dose e diminuição do tempo de aplicação da segunda dose em detrimento de ampliação da primeira dose são movimentos que favorecem de forma natural novas variantes e a perpetuação" da epidemia. "Nesse sentido, o Estado segue as orientações do Ministério da Saúde, que tem competência para essa decisão e espaço, inclusive, para dialogar com outros países", finaliza a nota.