O presidente Jair Bolsonaro afirmou na quinta-feira (10) que vai desobrigar o uso de máscaras no país por vacinados ou já infectados. Mais tarde, recuou e disse que a decisão recairia sobre o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, prefeitos e governadores. Ao contrário do Brasil, nações que já suspenderam o uso do acessório, como Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia e Israel, haviam imunizado parcela muito maior da população ou mantinham índices de transmissão irrisórios.
Não há uma fórmula ou número mágico para decidir pela flexibilização do uso de máscaras, mas especialistas consideram que os níveis de transmissão precisam estar controlados, em queda, e a cobertura vacinal deve estar alta para suspender o uso do acessório, que previne a dispersão de gotículas e aerossóis.
Especialistas da área da saúde ouvidos pela reportagem consideram a discussão sobre liberar o uso de máscara no Brasil descabida e chocante, uma vez que o país vivencia o oposto dos requisitos para implementar a mudança: apresenta baixa cobertura vacinal e altos índices de transmissão e de mortes. O Brasil tampouco realiza barreiras sanitárias com outros países ou entre Estados, rastreia contatos nem testa em massa, ao contrário de nações que optaram por deixar de obrigar o uso de máscaras.
Até esta sexta-feira (11), 25,6% dos brasileiros receberam a primeira dose e apenas 11,2%, a segunda aplicação, segundo o portal Covid-19 no Brasil. Especialistas sugerem que a imunidade coletiva possa ser alcançada com cerca de 70% de pessoas com duas doses.
Além da vacinação em patamares distantes dos ideais, a circulação viral está alta. O último relatório da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), de quarta-feira (9), diz que a pandemia brasileira está “em alto risco” e que apresenta “ligeira queda” no número de óbitos, “altas taxas de ocupação de UTI” e “número alto de casos”.
Na última semana, o Brasil foi, proporcionalmente, o país com o maior número de novos casos e de novas vítimas dentre as nações com mais de 100 milhões de habitantes, conforme dados do Our World in Data. O país ainda lidera o número de casos e de mortes ao longo da pandemia, dentre os países mais populosos do planeta, como mostra o gráfico a seguir.
Israel
Quando Israel flexibilizou o uso de máscaras ao ar livre, em 16 de abril, mais da metade da população ganhara a segunda dose da Pfizer e a média móvel era de apenas 5,6 mortes diárias para 9 milhões de habitantes – para comparação, a média móvel do Rio Grande do Sul, com seus 11,4 milhões de pessoas, é de 44 vítimas por dia, segundo painel da Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS).
No momento em que Israel deixou de obrigar a população a utilizar o acessório, o ministro da Saúde, Yuli Edelstein, afirmou que a liberação estava ancorada na ciência e que os índices de mortalidade estavam muito baixos graças à vacinação.
Austrália
Na Austrália, o uso de máscaras começou a ser relaxado em 17 de maio, no transporte público, após o país permanecer mais de um mês sem uma única morte por coronavírus. Hoje, apenas 3% da população tomou a segunda dose da vacina, mas a circulação viral é quase inexistente e a última vítima da doença morreu em 12 de abril, segundo o Our World in Data.
O país tem um intenso rastreamento de pessoas que circulam pelo território, por meio do celular: quando há um teste positivo, o governo implementa um curto período de isolamento a todos que vivem ou passaram pela região. Também houve fechamento de fronteiras com outros países e entre os Estados. Com tais medidas, já foi possível permitir shows com 70 mil pessoas.
Nova Zelândia
Na Nova Zelândia, o uso de máscaras no transporte público foi desobrigado a partir de 23 de setembro. À época, a média móvel de mortes diárias era zero e o país havia registrado um total de apenas 25 vítimas. A cobertura vacinal é de somente 5,6% com duas doses hoje, mas o país pode se dar ao luxo de manter uma vida normal em meio à circulação do vírus praticamente nula.
Estados Unidos
Nos Estados Unidos, o uso de máscaras em ambientes abertos ou fechados deixou de ser obrigatório em 13 de maio para os vacinados que completaram duas semanas com a segunda dose. O anúncio ocorreu um mês após imunizantes estarem liberados para todas as pessoas acima dos 16 anos, e quando 46% da população havia tomado a primeira dose e 35%, a segunda.
Naquele dia, a média móvel era de 627,7 mortes diárias nos Estados Unidos. Na quinta-feira, quando Bolsonaro sugeriu a suspensão da obrigatoriedade do uso de máscaras, a média móvel de vítimas no Brasil era de 1.764, sendo que a população do país é menor do que a americana.
Os norte-americanos usam as vacinas contra covid-19 da Pfizer e da Moderna, com intervalo recomendado de apenas 28 dias pelos laboratórios. Hoje, 43,1% de todos os norte-americanos receberam as duas doses.
Eficácia das vacinas
A imunologista Cristina Bonorino, membro do Comitê Científico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), destaca que, nas nações que flexibilizaram o uso de máscaras, as vacinas usadas pela maior parte da população tinham eficácia superior a 90%.
Só a vacina não resolve até todos estarem vacinados. Até lá, precisa ter vacina, isolamento, uso de máscara e ambientes abertos, com ventilação natural
CRISTINA BONORINO
Imunologista, membro do Comitê Científico da SBI
A maior parte dos imunizantes usados no Brasil é eficaz para prevenir contra hospitalizações e mortes, mas tem menor potencial de reduzir transmissões – por isso, autoridades afirmam que os brasileiros devem se vacinar e seguir usando máscara.
— Quanto maior a eficácia da vacina, maior o indicativo de que ela barrou uma replicação do vírus e, portanto, a pessoa vai transmitir menos. Só a vacina não resolve até todos estarem vacinados. Até lá, precisa ter vacina, isolamento, uso de máscara e ambientes abertos, com ventilação natural — diz Bonorino.
Ela ainda debate a dificuldade de fiscalizar quem foi vacinado:
— Se liberam o uso de máscara para quem está vacinado, como saberemos quem tomou e quem não tomou a vacina? — questiona.
Eficácia das máscaras
Uma série de estudos já provou que as máscaras são eficazes em reduzir a transmissão viral. Nesta sexta-feira (11), a porta-voz da Organização Mundial da Saúde (OMS) Margaret Harris reforçou que o acessório é recomendado, reportou o portal UOL.
— O que queremos é reduzir a transmissão da doença, e não sabemos se as vacinas podem evitar transmissão. Mesmo se você estiver vacinado, você ainda pode ser infectado e passar o vírus — declarou.
Projeção do Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME), da Universidade de Washington, chega inclusive a mensurar o número de mortes a depender da adesão ao uso de máscaras. Para 1º de outubro, o instituto prevê um total de 727 mil mortes por coronavírus no Brasil, mas, com amplo uso de máscaras, o número pode cair para 694,6 mil, uma diferença de mais de 32 mil vidas salvas.
Para o Rio Grande do Sul, o IHME prevê 43,1 mil mortes, mas, com grande adesão ao acessório, o total pode cair para 38,2 mil – cerca de 4,9 mil gaúchos salvos.
Em meio a uma baixa cobertura vacinal, suspender o uso de máscaras é arriscado devido ao potencial adoecimento grave pela covid-19, pontua Alessandro Pasqualotto, médico infectologista da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e supervisor-médico do Laboratório de Biologia Molecular do hospital.
Ele destaca que o uso de máscaras é um dos requisitos para controlar a pandemia, que o acessório previne o surgimento de novas variantes, protege os não vacinados e impede pessoas já infectadas de adquirir covid-19 novamente.
— Quem pegou covid tem uma imunidade não muito duradoura, de quatro a seis meses. E os dados americanos mostram que, nos casos de reinfecção, uma em cada três pessoas vai ao hospital — diz Pasqualotto.
A falha do Chile
Contar apenas com os imunizantes, sem uso de máscara e distanciamento, dá margem para uma maior circulação viral e adia o momento de adquirir controle da pandemia. Exemplo é o Chile, que, a despeito da alta vacinação, não focou nos outros cuidados.
Não sei quanto tempo precisaremos usar as medidas, mas enquanto houver circulação importante desse vírus, a gente precisa continuar fazendo distanciamento e usando máscara
ALESSANDRO PASQUALOTTO
Médico infectologista da Santa Casa de Misericórdia
Até agora, o país tem 43,3% da população vacinada com duas doses, mas não está dando conta de controlar as novas infecções e o número de mortes por causa da alta circulação dos chilenos e pelas duas variantes de alta transmissão: a andina e a Gama, originária de Manaus. Além disso, o Chile usa, em sua maioria, imunizantes de menor eficácia.
Sem controle, o Brasil de amanhã pode vivenciar o mesmo obstáculo do Chile: avanço da vacinação, mas transmissão viral descontrolada em função do relaxamento nos cuidados.
— O Chile mostra que apenas a vacinação não basta. As pessoas precisam continuar se protegendo, fazendo distanciamento e usando máscara. Não sei quanto tempo precisaremos usar as medidas, mas enquanto houver circulação importante desse vírus, a gente precisa continuar fazendo distanciamento e usando máscara. Discutir a retirada da máscara nem cabe do ponto de vista científico — conclui Pasqualotto.