As limitações que prendem ao leito um doente em recuperação de complicações da covid-19 quase desaparecem graças ao auxílio da realidade virtual. Afonso Caetano Ramalho, 56 anos, motorista de ônibus, pediu para encarnar um piloto de Fórmula 1 durante uma sessão de fisioterapia no Hospital São Lucas (HSL) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), onde esteve internado por mais de 40 dias, a maior parte deles na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), dependente de um ventilador mecânico.
Deitado, com óculos de realidade virtual de visão de 360º acoplados à cabeça e segurando um anel de pilates — arco de plástico e EVA que manuseava como um volante —, Afonso ignorou o limite de velocidade de 60 km/h ao qual está habituado nas ruas da Capital, circulando desde as 4h50min com a linha Bonsucesso. Apesar de colidir contra outros carros, infrações que renderam risos ao experiente condutor, deixou-se levar pelo incentivo das profissionais de saúde que o assistiam e o incentivavam, aos gritos de “acelera!”.
— Aquilo ali é uma maravilha! Te tira do leito — define Afonso, que não chegou a levantar no dia em que experimentou as curvas em alta velocidade de um circuito de corrida, mas conseguiu mexer os braços, o tronco e a cabeça.
Morador da Lomba do Pinheiro, onde vem reaprendendo a realizar as mais simples tarefas do dia a dia, ainda necessitando de auxílio, o motorista, antes de ter alta, experimentou outros cenários, como praia e cidade. Um celular conectado aos óculos permite que se selecione o ambiente virtual desejado — pescaria, céu estrelado, campo florido, ringue de luta.
Em uso há dois meses, o recurso estreou no HSL por iniciativa da fisioterapeuta Clarissa Blattner, professora da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da PUCRS e coordenadora do estágio curricular em Fisioterapia, em uma época de grande estresse e sobrecarga para todos os funcionários — era o pior momento da pandemia no Estado, com falta generalizada de leitos, equipamentos e insumos.
Após a autorização do controle de infecção do HSL, Clarissa levou os óculos de casa para o trabalho e os experimentou em um paciente — de imediato, a expressão facial dele mudou. O resultado animador inspirou profissionais experientes, residentes e também alunos em formação.
Hoje, 10 acessórios do tipo estão distribuídos em diferentes áreas, incluindo internação e UTIs para covid-19, pós-operatório de cirurgia cardíaca, cirúrgica e cardiovascular. Os pacientes beneficiados são vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS) e também a convênios.
— É uma ferramenta que veio como aliada em um período de muita necessidade de suporte ventilatório, muitos pacientes saindo da UTI em processo de reabilitação lento, déficit motor, de força, de equilíbrio. Nessa saída, é muito importante o processo de reabilitação — comenta Flávia Franz, fisioterapeuta, gestora do Serviço de Fisioterapia do HSL e professora do curso de Fisioterapia da universidade.
Flávia destaca que a equipe se diverte e se motiva durante as sessões mais lúdicas à medida em que o paciente vai relatando o que vê dentro da estrutura dos óculos e se movimentando de acordo com o cenário. Um doente que “viajou” para Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro, surpreendeu-se com a brisa nas costas ao andar pelo quarto — na verdade, o ventinho não era da orla, mas de uma janela próxima que estava aberta. Outro que optou pelo mar se sobressaltou quando uma onda lhe “tocou” os pés. Um terceiro evitou uma aglomeração, mudando seu trajeto.
— Um paciente de leito de UTI mal move a cabeça. No momento em que ele se encanta e sorri, você consegue ver o engajamento, a melhora da autoestima. Ele vê que consegue sair daquele ambiente, se torna um pouco mais funcional meio que automaticamente. Nós vemos a expressão de surpresa, ele vai se envolvendo com a cena — descreve a fisioterapeuta. — Pedir para um paciente levantar um braço é uma coisa. Pedir para ele pegar uma vara de pescar ou uma flor é outra. A realidade virtual acaba sendo uma grande aliada no processo de reabilitação. Nosso foco é entregá-lo o mais funcional possível para a sociedade — acrescenta.