Uma emergência descolada de toda a estrutura de um hospital. É mais ou menos essa a ideia das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) de Porto Alegre. Se uma casa de saúde conta com ala de internação, bloco cirúrgico, Unidade de Terapia intensiva (UTI) e emergência, a UPA representa apenas essa última parte, destinada ao atendimento preliminar de pacientes para posterior encaminhamento a uma instituição. Acontece, no entanto, que a covid-19 mudou toda essa lógica. Agora, as quatro UPAs da Capital fazem as vezes de hospital.
Antes da pandemia, as UPAs atendiam a comunidade por meio de consultas e, na maioria das vezes, conseguiam resolver os problemas antes de encaminhar os pacientes para um hospital, conta Alexandre Bublitz, coordenador médico da UPA Bom Jesus, na Zona Leste. Atualmente, o cenário é completamente diferente. Só na unidade de Bublitz, a lotação era de 471,43% na manhã desta sexta-feira (12).
— Desde o início da pandemia, fomos tendo mais e mais pacientes internados. Nossa área de primeiro atendimento está virando um hospital, cada vez mais absorvendo os pacientes que a rede não absorve — diz.
Na prática, isso significa que salas de observação, consultórios, salas de isolamento e de pediatria estão sendo improvisadas para acomodar pessoas com problemas de saúde graves. Na manhã desta sexta-feira, na Bom Jesus, havia 33 pacientes em um local que deveria comportar sete. Desses 33, oito aguardam vagas em UTI.
— Tem pacientes em todos os lugares. Infelizmente, eles não estão nas condições adequadas. Precisamos organizar cadeiras, quase todos usam oxigênio. É bem ruim ver que muitos ficam dias conosco. Eles têm febre, dor no corpo, falta de ar, estão sozinhos e sentados em uma cadeira por dois, três dias — relata o médico.
De acordo com Bublitz, todos os três ventiladores da Unidade estão ocupados e um está em manutenção. No restante dos casos, usa-se oxigênio por cateter nasal ou máscara.
— Poderíamos ter mais pacientes em ventilação mecânica, não temos porque não temos (aparelhos). À medida que os hospitais ficam cheios, o lugar onde vai estourar é na UPA — avalia.
Área ampliada para covid-19
Com uma lotação que ultrapassou os 600% na noite de quinta-feira (11), o Pronto Atendimento Cruzeiro do Sul tinha, nesta manhã, 50 pacientes em atendimento, para um total de 12 vagas, alcançando 416,67% de lotação. A maior parte dos atendimentos é de pessoas com covid-19, o que obrigou as equipes a transformarem, "da noite para o dia", toda a área clínica do local em um ponto para pacientes com coronavírus.
— No início da pandemia, tinha uma tenda, "um puxadinho", para atendimento covid-19. Eram quatro leitos de espera para vaga em hospitais para quem estivesse grave. Agora, os ambulatoriais (não covid-19) estão na tenda e a maior parte do Postão é para coronavírus. Não tem estrutura física, os funcionários adoecem, tudo é improvisado: equipamentos de proteção individual, controle de infecção — relata uma médica do pronto-atendimento, que pede para não ser identificada.
Embora não trabalhe diretamente com pacientes infectados, essa médica conta que vê, em todos os plantões, a sobrecarga dos colegas, desgastados física e emocionalmente.
— É como carregar um elefante nas costas todos os dias em que está de plantão — ilustra.
Também lotada no Pronto Atendimento Cruzeiro, uma técnica de enfermagem que preferiu não revelar sua identidade diz que faz o sinal da cruz toda vez que precisa iniciar seu turno. Ela lida diretamente com pacientes com covid-19 e é surpreendida a cada plantão.
— Um dia cheguei para trabalhar e, em uma sala para duas pessoas, tínhamos seis. Quatro deles precisaram ser entubados naquele momento. Em um lugar onde cabiam sete poltronas, tem 15, 16. Espaços para seis camas já têm 20. Tudo é improvisado — descreve a técnica.
Durante os plantões, essa profissional conta que vê pacientes que deveriam passar, no máximo, seis horas esperando vaga em um hospital, estendendo a permanência por semanas no posto. Não raro, é preciso escolher quem vai ser entubado e quem, mesmo sem condições, não vai receber a assistência adequada.
— Tivemos uma menina de 26 anos que evoluiu gravemente e tivemos que entubar. Ela teve prioridade e os outros ficaram. Isso é horrível, não cabe à gente escolher. A situação saiu do controle. É humanamente impossível quatro funcionários cuidarem de 40 pacientes graves, seis entubados. Tu achas que a gente consegue se dedicar? Os pacientes estão morrendo e a gente não está vendo — desabafa, acrescentando que, em uma UTI, geralmente há um técnico de enfermagem para cada paciente.
Além da superlotação, a escassez de recursos humanos interfere diretamente no trabalho. A técnica de enfermagem lembra que, todos os anos, a prefeitura faz contratações emergenciais para suprir a demanda do inverno, mas que, até agora, não houve essa iniciativa. Fora isso, ela reclama que faltam equipamentos básicos, como bomba de infusão, dispositivo usado para entregar fluidos aos pacientes na quantidade exata recomendada pelo médico.
— O prefeito veio aqui e mostramos o que passamos. Até agora, a única coisa que veio foram cadeiras de rodas emprestadas. É uma situação de guerra. Não temos estrutura. O que a gente está vivendo é o apocalipse. É o fim do mundo — lamenta.
Para diminuir esse ritmo alucinante de casos graves, diz a técnica, a única saída é tomar medidas mais drásticas, como o lockdown. Ela critica a postura da prefeitura da Capital em defender a abertura do comércio na atual situação:
— Ou tomamos atitudes drásticas ou, cada vez mais, jovens vão morrer. É aí que o comércio não abre mesmo.
A Secretaria Municipal de Saúde, por meio da assessoria de imprensa, informou que "existe um processo de contratação temporária em andamento para repor o déficit de recursos humanos ocasionado pela pandemia de coronavírus. O processo está em tramitação interna na prefeitura e a previsão de iniciar as contratações em 30 dias".
Com relação aos pronto-atendimentos, a Secretaria explicou que "as áreas realizaram um levantamento e apontaram algumas necessidades. O volume de atendimento cresceu muito e a necessidade de alguns equipamentos aumentou, assim como nos demais pronto-atendimentos e também nos hospitais. O objetivo é ter o PA como ambiente de estabilização até que seja possível a internação do paciente, disponibilizar o leito adequado para o paciente no momento oportuno. A Secretaria Municipal de Saúde (SMS), pela coordenação de Urgências, está constantemente avaliando a necessidade de aquisição de mais equipamentos, conforme a demanda se apresenta na unidade. Nos PAs Bom Jesus e Lomba do Pinheiro, a empresa SPDM foi contratada pela SMS para administrar os locais. A Secretaria irá contatar a direção para verificar se a falta de equipamentos se confirma".
Adaptação e improviso
— Vamos, ao máximo que podemos, usando recursos físicos, equipamentos e equipe para atender o máximo de pessoas.
O relato, repetido à exaustão, poderia ser feito por qualquer profissional das UPAs de Porto Alegre. Neste caso, a fala pertence a Jaqueline Cesar Rocha, gerente da UPA Moacyr Scliar, na Zona Norte.
Apesar da limitação do espaço físico, as equipes fazem o que podem para garantir a assistência a todos os pacientes que aguardam encaminhamento para hospitais. Por este motivo, precisaram instalar macas, poltronas e usar um dispositivo em "Y" para assegurar que um ponto de oxigênio ou um cilindro consiga atender a dois pacientes ao mesmo tempo. O objetivo, explica a gerente, é fazer o manejo dessas pessoas a fim de estabilizar o quadro, sem que elas necessitem de respirador, recurso limitado nas UPAs.
— Quando falamos em leitos, consideramos os locais preparados: cama adequada, ponto de oxigênio e recursos necessários para um atendimento de paciente em observação. Leito é local adequado, não improvisado — define Jaqueline.
Para se ter uma ideia, a UPA Moacyr Scliar chegou a ter 13 pacientes em um ambiente para quatro, ou então 24 em um ponto que comporta 12. Atualmente, a sala de medicação é usada como ala não covid-19, para atender pacientes de outras enfermidades. Em fevereiro, a Unidade chegou a restringir a entrada de pacientes em razão da alta procura.
Todas as UPAs de Porto Alegre estão superlotadas e mantêm atendimento restrito a casos graves.
* Colaborou Aline Custódio