Apesar de ter apenas 20 anos de idade e não atuar na área da saúde, a gaúcha Manoella Raffone Fernandez já marcou para a semana que vem sua vacinação contra a covid-19. Ela vai apenas atravessar uma avenida, andar algumas quadras desde onde mora – em Santana do Livramento, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul – e se imunizar num posto de saúde em Rivera, no Uruguai.
Manoella faz parte de um grupo de brasileiros sortudos, os doble chapa, que têm também cidadania uruguaia, porque trabalham no Uruguai ou porque têm pai (ou mãe) uruguaios. Como a vacinação no vizinho país está mais adiantada que no Brasil, jovens como Manoella já marcaram sua imunização.
A mãe de Manoella, a professora Andrea Raffone, 53 anos, é nascida em Rivera, filha de pai uruguaio e mãe brasileira. Tem, como a filha, documentos de identidade dos dois países. Estudou no Uruguai, mas se formou em Letras em Pelotas. Aproveitou que, no Uruguai, professores são prioridade na vacinação e se imunizou.
— Agendei pelo WhatsApp, foi bem ágil. Só me pediram o número da cédula de identidade uruguaia. Recebi mensagem com retorno sobre datas de vacinação e os locais. Dia 13 farei a segunda dose — comemora.
Vacinar doble chapas é uma estratégia proposital das autoridades uruguaias, na intenção de blindar sua fronteira com o Brasil, país mais atingido no planeta, atualmente, pelo coronavírus. Não só brasileiros nascidos no Uruguai, mas também os que apenas trabalham lá.
O curioso nesse cenário é que a vacinação começou apenas em 1º de março no Uruguai (bem mais tarde que no Brasil), mas o processo de imunização já está bem mais adiantado que o brasileiro.
Outra particularidade é que a vacinação no Uruguai não foca prioritariamente em idosos, como na maioria dos países. É mais ligada na profissão do que na idade. Os primeiros imunizados foram trabalhadores do setor de saúde (como no Brasil), junto com policiais, bombeiros, militares e professores (algo que no Brasil não aconteceu). Depois vieram uruguaios de todas as profissões e que ainda estão no mercado de trabalho, entre 50 e 70 anos de idade. A alegação oficial do governo uruguaio era de dúvidas sobre eficácia da vacinação em idosos, mas suspeita-se que o motivo real seja que as pessoas que trabalham nas ruas estão mais expostas.
Agora a vacinação está aberta dos 18 aos 80 anos ou mais, independente de emprego.
A reportagem esteve nos locais de vacinação em Rivera. Há marcação para delimitar espaços, cada cidadão porta sua cédula de identidade e sua própria caneta, para evitar contaminações. É tomada a temperatura de cada pessoa, por um pessoal da saúde, devidamente paramentado. Tudo ao lado do hospital, mas separado da ala de internação. É designada até uma servidora da Saúde para tirar fotos do vacinado (se ele desejar).
Uma das que estava na fila em Rivera, na manhã de terça-feira (23), era a professora aposentada Tânia Guimarães Corsino Rodriguez, 67 anos, brasileira e moradora de Santana do Livramento. Ela decidiu não esperar. Usou de sua condição fronteiriça e se vacinou no Uruguai, já que no Brasil recém abriu a imunização para moradores com idade acima de 70 anos.
— Nasci em Santana (do Livramento), mas tenho pai uruguaio e moro em Rivera. Nem tinha telefone uruguaio para agendar a imunização, aí peguei emprestado de um amigo e marquei com as autoridades de saúde uruguaias. Foi rápido e simples — descreveu ela à reportagem de GZH.
Enquanto isso, no lado brasileiro da fronteira, a vacinação evolui aos poucos. Foram imunizados profissionais de saúde, idosos que moram em asilos e, de poucas semanas para cá, idosos em geral – a atual faixa é dos 70 anos de idade.
Outro brasileiro vacinado no Uruguai é o professor e jornalista Marcelo Rodriguez, 43 anos, um perfeito exemplo da miscelânea fronteiriça. Apesar de nascido no Rio Grande do Sul, ele mora Uruguai desde 1997 e, portanto, cidadão daquele país. Mora em Rivera há décadas. Nunca teve carteira trabalhista assinada por empresas uruguaias, mas está credenciado no Uruguai para tratamentos de saúde.
Mesmo que não morasse no Uruguai, Rodriguez teria direito a se vacinar lá, porque é cidadão uruguaio por consanguinidade: a mãe é uruguaia e o pai, brasileiro. É o clássico doble chapa. Os pais dele se vacinaram em território uruguaio, assim como ele.
Rodriguez, que no momento atua só no magistério, é de grupo de risco (tem leve grau de obesidade) e por isso foi priorizado na vacinação. Facilitou o fato de ter, além de identidade brasileira, a uruguaia.
— O Uruguai enviou sobras de vacinas para a faixa de fronteira e aí agendei, pelo telefone. Em menos de um dia estava vacinado – celebra ele.
Vacinação total em breve
O Uruguai, apesar de ser um dos últimos países da América a iniciar a vacinação, deve terminar de inocular a primeira dose nas próximas semanas. Já tem comprados os imunizantes para todos os cidadãos. Isso tem provocado uma “inveja saudável” entre vizinhos nas cidades gêmeas de Santana do Livramento e Rivera. Gente acostumada a tomar mate junto, por exemplo, vive situações diferentes agora: uns vacinados, outros não.
As discussões nas praças também envolvem outra polêmica, a abertura do comércio. As lojas no lado uruguaio, motor da economia em cidades fronteiriças, praticamente não fecharam durante a pandemia, embora com limitações de horário, de funcionários e de fregueses. Já no Brasil estavam fechadas até a última segunda-feira, por conta da bandeira preta. O que, aliás, motivou intensos protestos por parte dos comerciantes brasileiros.
É que diante da pandemia os uruguaios não decretaram confinamento obrigatório ou quarentena. O presidente uruguaio Luis Lacalle Pou prega "liberdade responsável": pediu à população que permaneça em casa, mas evitou controles mais severos, com fiscalização por policiais e forças de segurança, usados em outros países. Nesta terça-feira (23), entretanto, o Uruguai ordenou o fechamento dos freeshops até dia 12 de abril para tentar diminuir a contaminação.
Mais de 60% têm parentes no outro lado da fronteira
É difícil estimar quantos brasileiros serão vacinados no Uruguai, porque eles não se declaram brasileiros, na hora de pedir a imunização (a maioria omite isso e apenas mostra o documento uruguaio). E não se sabe qual é o universo dos doble chapa na fronteira Brasil-Uruguai.
Em Rivera, a última estimativa é de que 11 mil brasileiros estariam aptos a serem vacinados lá. Mas isso é suposição, porque muitos que têm cidadania dos dois países não se manifestaram ou sequer se sabe que a situação deles é essa. Uma tese de Doutorado em Antropologia realizada no início dos Anos 2000 por uma aluna da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sobre a temática dos doble chapa, mostrou que, dos nascidos em Rivera, 63% declaram ter parentes brasileiros. Já dos nascidos em Santana do Livramento, a proporção dos que afirmam ter familiares uruguaios é de 62%.
Ritmo do contágio assusta uruguaios
Nem tudo são flores no Uruguai. Ele é o país latino-americano com maior número de novos casos de covid-19 em relação à população, conforme dados da plataforma Our World In Data. O indicador chegou a 33 por 100 mil habitantes, contra 31 no Brasil. O Chile, que também enfrenta uma curva ascendente de casos da doença, tem 26 diagnósticos a cada 100 mil habitantes.
O Uruguai também atingiu esta semana volume recorde de novos casos durante a pandemia, de casos ativos e de pacientes internados em Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Com média de 33,51 casos a cada 100 mil habitantes em uma semana, está na chamada zona vermelha de risco, assim definida em parâmetros pela Universidade Harvard (a partir de 25 casos).
A grande diferença é que no Uruguai o patamar de mortes é bem menor que o dos países vizinhos. Com menos de 3,5 milhões de habitantes, o país contabilizava até esta terça-feira (23) um total de 811 mortos por covid-19, de acordo com o sistema nacional de emergências uruguaio. A taxa de letalidade, de cerca de 1%, é uma das mais baixas na América Latina e menor do que a observada em nações com populações similares, como Costa Rica, Panamá e Paraguai.