Mateus dos Santos da Silva, hoje com 17 anos, vive há três anos em uma UTI de Manaus após contrair raiva humana. A família passa por dificuldades financeiras, especialmente com a pandemia da covid-19, mas tenta levar o adolescente para casa.
Sem dinheiro, amigos criaram uma campanha para arrecadar pelo menos R$ 30 mil para cobrir inicialmente os gastos com uma nova residência em Novo Airão, no Amazonas — onde o acesso a Manaus é facilitado —, adaptação do quarto e alimentação.
A mãe, Débora Souza dos Santos, trabalha como merendeira e o pai, Levi Castro da Silva, consegue o sustento na roça, mas quando precisa ficar em Manaus não consegue trabalhar, chegando a vender balas na rua. Os irmãos, Lucas e Miriã, morreram com 17 e 10 anos, respectivamente, de raiva humana, na mesma época em que Mateus foi infectado.
A transmissão aconteceu em 2017, quando a comunidade onde eles viviam, às margens do Rio Unini, entre as cidades de Barcelos e Novo Airão, foi alvo de ataques de morcegos. Ao menos 250 pessoas, 36% da população local, com 700 habitantes em nove comunidades tradicionais, foram mordidas pelos morcegos hematófagos.
Mateus, Lucas e Miriã foram mordidos, cada um, vinte vezes, como conta a pesquisadora da ONG Instituto Internacional de Educação do Brasil, Satya Caldenhof, que mora em Manaus há 15 anos. Ela acompanhou de perto as dores da família e está à frente na campanha para doações.
— Na época, veio um especialista em morcegos e contou que eles são sedentários, fazem um ninho e escolhem uma só presa. Então, eles escolheram a casa da família do senhor Levi, que teve 10 ou 15 ataques. Só que, ao longo da vida, o senhor Levi levou mais de cem mordidas e achava que isso era normal. Ninguém falou para ele que era gravíssimo — disse.
Levi conta que apesar de não ter essa informação, as associações das comunidades foram atrás do poder público quando tudo aconteceu.
— A gente alertou o Estado e o município porque os ataques de morcegos estavam demais — diz.
Em um intervalo de uma semana, Lucas morreu. Miriã foi internada no dia do enterro de Lucas. No início de dezembro de 2017, quando Miriã morreu, Mateus foi internado.
Vacina foi aplicada tarde demais
A vacina com os imunizantes foi administrada tardiamente.
— Apenas quando estava todo mundo naquela situação, quando meus filhos já estavam todos internados e morrendo — contou Levi ao Estadão.
Já Satya conta que ficou no hospital com Miriã para a família sepultar Lucas e, depois, com Mateus, para o sepultamento de Miriã.
— Tive muito contato com eles quando fiz minha pesquisa de mestrado. O senhor Levi é um dos líderes da comunidade, então tive muito contato, e Débora ficou minha amiga — relata a pesquisadora.
Atualmente, Mateus está em estado vegetativo, é alimentado por sonda e não se sabe se seus poucos movimentos de braços são voluntários.
— No início, ele se mexia, chegou a passar um tempo na enfermaria, ficar de cadeira de rodas e respondia aos estímulos do pai quando ele pedia para levantar braços e pernas. Ainda que não conseguisse falar, ele respondia — conta Satya.
O pai, Levi, conta que seu filho teve muitas pioras nesses três anos de internação e que a vida socioeconômica piorou muito com a pandemia.
Dificuldades ficaram maiores na pandemia
A família tem um custo mensal de R$ 1 mil só para pagar aluguel e energia em Manaus. Eles querem levar Mateus para uma nova casa em Novo Airão para poderem ficar perto do Rio Unini e ter um custo de vida menor.
— Esse ano de 2020, principalmente, foi muito complicado para nós. Eu faço bico e depois tive que parar com o lockdown. Só minha esposa continua trabalhando e recebendo o salário pequeno dela de merendeira. Estávamos vivendo disso. Ir a Novo Airão será um salto muito grande. Para nós que vamos ficar perto dele, poder cuidar dele, ficar mais próximo. Se ele vai ficar bom, Deus sabe. Se não vai ficar bom, Deus sabe também, mas a gente quer pelo menos ficar perto dele enquanto Deus permitir — conta Levi.
Em dezembro de 2020, os pais de Mateus receberam a informação de que ele seria transferido para uma enfermaria do dia para a noite, sem aviso prévio.
— Isso foi uma grande falha do Estado, do hospital. Eles queriam o leito para pessoal de covid-19 para internar crianças, porque nessa leva muitas estão tendo dificuldades quando pega o coronavírus — afirma Levi.
A mobilização feita pela família e por amigos, como Satya, conseguiu levar Mateus para a UTI do Instituto da Criança do Amazonas (ICAM), onde ele permanece até hoje. Nos dias em que ficou na enfermaria, Débora, a mãe de Mateus, precisou fazer todos os trabalhos de uma enfermeira e dormiu em uma pequena cadeira de plástico. Família e amigos ficaram preocupados com a possibilidade de Mateus contrair a covid-19 na enfermaria.
— A gente tem uma imagem de que eles descartaram o Mateus, de que deixou de ser interessante manter esse menino — argumenta Satya.
A família de Mateus, nesses três anos, recebeu cesta básica do governo somente duas vezes. Levi conta que o auxílio emergencial do governo federal ajudava, mas que as contas ficam ainda mais no vermelho com o fim do benefício. As doações de amigos são essenciais. Com o decreto de um novo lockdown, a família não pode ir a Manaus visitar Mateus, que atualmente recebe cuidados e produtos de higiene comprados pela família por meio de um sobrinho de Levi.
— A gente está sobrevivendo. É Deus que sustenta a gente. Tem hora que a gente tem aquela baixa, aquela tristeza, aquela dor, aquela angústia. É muito difícil. Quanto mais o tempo passa, mais bate o desespero. Mas a esperança também nunca morre. Não tem sido fácil. Não vou dizer que é moleza, e nem tem sido — desabafa Levi.
Questionado, o governo do Amazonas respondeu à reportagem por meio de nota. "A Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas informa que a criança está recebendo todo o atendimento médico necessário no ICAM. A Superintendência Estadual de Habitação do Amazonas (Suhab) informa que o imóvel para atender a família, em sistema de concessão, está em fase de liberação. O órgão já realizou seis visitas pelos técnicos sociais dentro do processo", diz o conteúdo.
O tratamento de Mateus pode ser feito em casa. Segundo Satya, ele também está resguardado pelo programa do Sistema Único de Saúde (SUS) chamado de Melhor Em Casa. A campanha de doação realizada por Satya e mais nove amigos indicam que as contribuições podem ser transferidas diretamente para Débora Souza dos Santos, mãe de Mateus, por meio do PIX CPF: 988.716.172-15.
— Nós não temos uma ganância. Queremos deixar todo mundo tranquilo para analisar a situação e fazer a doação. A gente vai ficar muito feliz e agradecido. Oramos muito pelas pessoas que estão nos ajudando — ressalta Levi.
Raiva humana é letal
A raiva humana é uma doença considerada letal, sendo transmitida pela saliva do morcego hematófago e outros mamíferos infectados. Ao entrar no organismo, o vírus ataca o sistema nervoso por meio da medula e se instala no cérebro, provocando encefalite. O período de incubação pode variar anos, mas geralmente é de quatro a oito semanas.
Para evitar complicações, o soro e a vacina devem ser administrados antes que o vírus atinja o sistema nervoso central. Quando alguém é mordido por um animal que não recebeu a vacina antirrábica, é preciso lavar a ferida imediatamente com água corrente e sabão, além de procurar atendimento urgente para receber os anticorpos do soro e da vacina.