Mesmo com a campanha de vacinação contra o coronavírus prestes a começar no país e a sinalização de que o plano será, enfim, liderado pelo Ministério da Saúde, as incertezas sobre o futuro da pandemia exigirão dos 5.568 prefeitos eleitos em novembro esforço extra para salvar vidas e recuperar a economia.
Ainda não há respostas definitivas para todas as dúvidas, mas, na avaliação de infectologistas, epidemiologistas e especialistas em saúde pública, o recrudescimento da covid-19 demandará atenção redobrada a questões como oferta de testes, capacidade de atendimento e limitações à circulação. Os preparativos para o início da imunização também integram a lista e são apontados como prioridade pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
No fim de 2020, o órgão decidiu publicar instruções endereçadas aos novos gestores, na tentativa de oferecer suporte no enfrentamento à doença. No texto, a instituição destaca ao menos três ações "que podem e devem ser realizadas em âmbito municipal":
1) manter medidas de prevenção de riscos, 2) reforçar a atenção primária à saúde, porta de entrada do SUS e 3) preparar-se para a vacinação.
O primeiro item é alvo de especial preocupação, porque a imunização iminente pode levar muita gente a acreditar que não há mais perigo, afrouxando o controle. Segundo a entidade, “é fundamental a ação dos municípios na observação a essas orientações (de prevenção) até que tenhamos uma cobertura vacinal significativa que permita a revisão das mesmas”.
— Não se trata de fazer lockdown, que é um modelo europeu e que não sei se caberia no caso brasileiro. A orientação é seguir indicando o uso de máscara, o distanciamento social, seguir com restrições — reforça Christovam Barcellos, sanitarista da Fiocruz.
O que é jornalismo de soluções, presente nesta reportagem?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
Quanto ao segundo item, o reforço à atenção básica envolve, principalmente, a Estratégia de Saúde da Família. São 44 mil equipes espalhadas pelo país, com 260 mil agentes comunitários que assistem cerca de 64% da população brasileira. Quanto mais fortalecido e azeitado estiver o programa, maior será o poder de fogo dos municípios contra a disseminação do vírus. Pelo conhecimento que têm das comunidades, essas equipes também serão vitais no êxito da vacinação, que, desde a última quinta-feira, está mais próxima de virar realidade.
Na ocasião, após meses de idas e vindas, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, anunciou a decisão de comprar 100 milhões de doses da CoronaVac e confirmou outras negociações já em andamento. Se as promessas se confirmarem, a ofensiva terá início entre 20 de janeiro e 10 de fevereiro.
O governador Eduardo Leite garante que o Estado está pronto para fazer a sua parte. Segundo o governo gaúcho, há 4,5 milhões de seringas e 5 milhões de agulhas em estoque, e a logística de distribuição regional está desenhada com base na já tradicional campanha contra a gripe.
A partir daí, conforme o Manual de Normas e Procedimentos para Vacinação do Ministério da Saúde, cabe às prefeituras a aplicação das injeções. Não por menos, ressalta o mestre em Saúde Pública pela Universidade de Harvard (EUA) Marcio Sommer Bittencourt, prefeitos e prefeitas têm uma lição de casa urgente a cumprir: desde já, planejar cada passo da etapa final. Esse talvez seja o maior desafio no momento.
— Os municípios precisam estar com tudo pronto. Quando a vacina chegar, onde será guardada? Há profissionais de saúde treinados em número suficiente? Onde serão feitas as aplicações para atender muitas pessoas sem haver filas ou aglomerações? — questiona Bittencourt. E complementa: — Estão pensando em trabalhar em horário ampliado, ou em utilizar espaços maiores como ginásios para acelerar os resultados, como outros países estão fazendo? Qual será a estratégia de comunicação com as pessoas a serem vacinadas?
Com base nessas questões, nas notas da Fiocruz e com a ajuda de pesquisadores que são referência em suas áreas e instituições, GZH elenca, a seguir, 10 pontos com recomendações para auxiliar os gestores municipais nessa nova e crucial fase da luta contra a covid-19.
1) Dilema da vacina
Após anúncio do Ministério da Saúde garantindo a compra de doses da vacina CoronaVac, parte da angústia dos prefeitos em relação à imunização arrefeceu. Ainda assim, é importante acompanhar os desdobramentos. Caso seja necessário, o presidente da Federação das Associações dos Municípios do Estado (Famurs), Maneco Hassen, diz que as prefeituras gaúchas, em parceria com o Palácio Piratini, já têm como plano B a aquisição conjunta da CoronaVac, a um custo de US$ 10,30 por dose (perto de R$ 55) — mas o ministro Eduardo Pazuello revelou que a União pretende incorporar "toda a produção" do Instituto Butantan, o que poderia exigir outras negociações.
Especialistas ressaltam que o ideal é contar com remessas do governo federal, mas admitem alternativas, se o programa nacional não decolar.
— Normalmente, o Ministério da Saúde compra (vacinas), os Estados distribuem, e os municípios aplicam. Mas vivemos uma situação que não é normal. Nesse caso, podem, sim, ser buscadas soluções locais — avalia a professora da UFCSPA e membro do comitê científico da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) Cristina Bonorino.
2) Busca por insumos
As dificuldades da União para adquirir seringas elevaram a preocupação em relação aos insumos para a vacinação. No caso do Rio Grande do Sul, o governador Eduardo Leite assegura ter 4,5 milhões de seringas em estoque e 10 milhões em processo de compra, além de 5 milhões de agulhas. Segundo ele, isso será suficiente para a primeira fase.
Caso seja preciso, há alternativas em nível local. Um dos caminhos para as prefeituras seria apostar em consórcios intermunicipais (leia mais a seguir). Outra possibilidade, diante do mercado restrito, é usar a criatividade.
— Um amigo da Universidade de Oxford (Inglaterra) foi avisado de que vai faltar gelo seco na instituição porque será direcionado à campanha de vacinação. Faculdades de Medicina ou Veterinária podem ter seringas, agulhas e outros materiais. É preciso pensar como se estivéssemos em guerra e avaliar todas as opções — orienta o mestre em Saúde Pública pela Universidade de Harvard (EUA) Marcio Sommer Bittencourt.
3) Verificação de equipes
Mesmo sem definição sobre a vacina, os prefeitos devem, desde já, reunir as equipes de saúde do município para ouvi-las e avaliar pontos cruciais: haverá profissionais suficientes para fazer a vacinação com agilidade? Existe a necessidade de capacitação?
Professor de Administração Pública da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Álvaro Guedes diz que é importante escutar aqueles que estão na linha de frente para definir ações. Se houver defasagem de pessoal, a alternativa é realizar contratações emergenciais ou ampliar carga horária. Outra saída pode vir de parcerias com universidades, não só com a cessão de alunos de faculdades da saúde, mas também com eventuais treinamentos.
— Precisamos administrar a escassez. O Brasil tem tradição em vacinação e tem a expertise do Programa Nacional de Imunizações. Isso não deve ser deixado de lado. O pessoal da saúde sabe o que fazer e precisa ser ouvido nessa hora — aconselha Guedes.
4) Planejamento da vacinação
Além de avaliar se há pessoal suficiente para fazer a vacinação, prefeitos e prefeitas já devem planejar a estratégia de aplicação das doses. Isso inclui, por exemplo, a definição dos horários de funcionamento dos postos, a eventual abertura aos finais de semana, além de formas de evitar aglomerações.
A infectologista Raquel Stucchi, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), cita exemplos práticos do que não pode ser esquecido:
— Tem freezers suficientes para as vacinas? Estão funcionando? Outro ponto: haverá dias de vacinação fora dos postos, em estacionamentos de supermercado, estádios de futebol? O prefeito já pode procurar os empresários para deixar isso acertado. Outro ponto é a estratégia de comunicação da campanha, para convocar a população. Tudo isso precisa ser pensado com antecedência.
Universidades podem ser importantes pontos de apoio. A prefeitura da Capital, por exemplo, já procurou a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que dispõe de conhecimento e equipamentos como freezers de baixíssimas temperaturas, para uma parceria na área de logística.
5) Polêmica do kit-covid
Alvo de controvérsia no meio médico, o kit-covid, composto por remédios como hidroxicloroquina e ivermectina, foi adotado por prefeituras ao longo de 2020 e segue causando polêmica — passará a ser disponibilizado inclusive em Porto Alegre em 2021, sob o argumento de que, se médico receitar e o paciente concordar, a rede pública deve oferecer o kit.
A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), contudo, não recomenda o tratamento precoce com esses medicamentos porque não há comprovação de sejam realmente eficazes. Além disso, há uma série de efeitos colaterais.
— Entregar cloroquina é uma estratégia inútil — afirma Marcio Sommer Bittencourt, mestre em Saúde Pública.
6) Prevenção em alta
Especialistas sustentam que é hora de manter o rigor em relação a distanciamento social, combate a aglomerações e uso de máscara. Vale lembrar: dezembro foi o mês com maior número de mortes por covid-19 no Rio Grande do Sul, com 1.857 vítimas.
— Não é admissível que, quando estamos perdendo mais pessoas, tenhamos aumento de circulação e de ocupação de espaços. Uma política baseada em evidências recomenda o oposto — diz o infectologista Ronaldo Hallal.
Conforme orientações da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), “é fundamental que sejam reforçadas, por meio de legislações e decretos, as medidas de isolamento com proteção social dos grupos vulneráveis, bem como intensificadas campanhas de prevenção”. As medidas, segundo a entidade, devem ser veiculadas por todos os meios de comunicação disponíveis.
7) Cuidados na gestão de leitos
O Rio Grande do Sul atingiu no dia 25 de dezembro o maior número de pessoas internadas com covid-19 em UTIs desde o início da pandemia, com 986 doentes. Isso indica que a gestão de leitos deve se manter como prioridade dos prefeitos das cidades maiores, que servem de referência para os vizinhos menos populosos, em parceria com o governo estadual. Uma das prioridades é avaliar a necessidade de criar ou reabrir vagas fechadas durante o período de recuo da doença, levando em conta que o vírus voltou a ganhar força e há mais demanda de casos não-covid represados.
— Os municípios precisam avaliar as tendências após a progressiva liberação das atividades, o impacto das doenças não-covid e a estrutura atual, que pode ter diminuído em relação a meses anteriores, para fazer uma repactuação — observa o gerente de Risco do Hospital de Clínicas da Capital, Ricardo Kuchenbecker.
A Secretaria Estadual da Saúde informou que serão abertos ou reativados cem leitos de UTI e outros 68 de retaguarda (que podem ser habilitados conforme a demanda).
8) Testar, testar, testar
Um estudo da Fiocruz aponta que o Brasil ainda testa muito pouco. Estados como o Rio Grande do Sul ficam em uma faixa próxima ou superior a 25% de exames com resultado positivo, enquanto a Organização Mundial da Saúde recomenda menos de 5% (um índice alto sugere volume de testes insuficiente ou que apenas os casos graves são testados, o que não ajuda a conter o avanço do vírus). Os prefeitos devem buscar não apenas ampliar as testagens, mas usá-las para conter a pandemia, o que permitiria afrouxar restrições.
— O governante responsável que quer reduzir medidas de quarentena tem de focar em vigilância em saúde, não em cloroquina, que não funciona. Testar de forma abrangente e isolar os casos positivos. Depois disso precisa ter acompanhamento para evitar que o vírus passe de uma pessoa para outra — orienta a professora da Faculdade de Saúde Pública da USP Deisy Ventura.
9) Longe de brigas
A pandemia do coronavírus tornou-se alvo de embates políticos e ideológicos desde que surgiu no Brasil, no início de 2020. A avaliação de especialistas é de que isso contribuiu para tumultuar o ambiente e desviar o foco do mais importante: o enfrentamento da doença, uma questão de saúde pública. Aos novos prefeitos, a recomendação é manter-se longe da briga entre o presidente Jair Bolsonaro e o prefeito de São Paulo, João Doria.
— É hora de deixar a ideologia de lado. Isso foge ao sentido real da discussão — sintetiza Álvaro Guedes, professor de Administração Pública da Unesp.
Para a infectologista Raquel Stucchi, consultora da SBI, o agravamento da pandemia exige ações pautadas na ciência:
— Muitos gestores são novatos, estão chegando agora. Devem ter o olhar voltado a melhorar a saúde da população. E esse olhar é incompatível com o olhar ideológico.
10) Gestão compartilhada
Em tempos de crise, a cooperação entre municípios, principalmente os de menor porte, surge como alternativa para superar limitações de orçamento, em especial na área da saúde. A dica do economista Gustavo Fernandes, professor do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getulio Vargas, é: se a prefeitura ainda não aderiu a nenhum consórcio público intermunicipal, vale a pena seguir esse caminho.
Por meio dos consórcios, é possível, por exemplo, adquirir medicamentos, insumos e materiais hospitalares em maior escala e com menores preços. A união de forças também é uma forma de dar peso regional a demandas locais.
— Eu insisto muito nisso. Na Europa, é comum, mas, no Brasil, ainda é pouco explorado. Precisamos aprofundar a lógica de consórcios e de cooperação entre governos locais — diz Fernandes.