Discutida por Ministério da Saúde, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e governo do Estado de São Paulo, a estratégia de adiar a aplicação da segunda dose de vacinas contra a covid-19 para garantir que mais pessoas estejam de alguma forma protegidas segue a toada do debate de outros países e divide cientistas brasileiros, como mostram as avaliações de quatro especialistas entrevistados por GZH.
Na quinta-feira (7), o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, afirmou que a pasta cogita adiar a aplicação da segunda injeção da vacina de Oxford para proteger mais brasileiros o quanto antes. Em São Paulo, a estratégia é discutida para a CoronaVac, afirmou à Rádio Gaúcha o coordenador-executivo do Centro de Contingência do Coronavírus, João Gabbardo.
O plano repercute após o Reino Unido adiar para 12 semanas a segunda dose das vacinas da Pfizer e de Oxford e combinar imunizações de laboratórios diferentes. A opção britânica ocorre em meio a um cenário de falta de doses, alto número de mortes e uma variante do vírus mais contagiosa.
Originalmente, a Pfizer estipula o reforço em três semanas, mas a farmacêutica incluiu dados de pessoas que tomaram o reforço após 12 semanas. O protocolo da imunização de Oxford estipula intervalo de quatro semanas, mas a AstraZeneca trouxe dados de que a vacina pode ser tomada após 12 semanas. O estudo da CoronaVac estipula intervalo de duas semanas.
Adiar a segunda injeção ainda é algo discutido no Canadá, na Alemanha e na Irlanda, enquanto que Dinamarca já decidiu postergar em seis semanas a vacina da Pfizer.
A ciência sabe que tomar a segunda dose de uma vacina aumenta a eficácia e a duração da imunidade. Adiar o reforço não faz mal à saúde, mas a proteção perde força e a defesa máxima avaliada em estudos não é alcançada.
O governo britânico afirma que “levando-se em conta o alto nível de proteção garantido pela primeira dose, projeções sugerem que vacinar inicialmente um número maior de pessoas com uma única dose prevenirá mais mortes e hospitalizações do que vacinar um número menor de pessoas com duas doses”.
Ao defender a estratégia, o Reino Unido cita que, após a primeira dose, a vacina de Oxford oferece, por 12 semanas, 73% de proteção no geral e 100% de proteção contra formas graves da doença – a eficácia geral com duas doses é de 90%. No caso da Pfizer, apesar de a eficácia com uma injeção ser de apenas 53%, entre 15 e 21 dias depois da aplicação a proteção ainda é alta, de 89% – a proteção com duas aplicações é de 95%.
A Pfizer, contudo, já emitiu nota afirmando que “não há dados que demonstrem que a proteção após a primeira dose se sustenta após 21 dias”. Especialistas da Organização Mundial da Saúde (OMS) destacam que não há dados que sustentem adiar a segunda dose da vacina da Pfizer para além de três semanas, mas que entendem a estratégia de países que se veem com poucas injeções e uma piora da epidemia.
Nos Estados Unidos, o FDA, equivalente à Anvisa, afirmou que não adotará a estratégia. Em nota, a agência reguladora afirma que “usar um regime de uma dose e/ou administrar menos do que a dose estudada nos ensaios clínicos sem entender a natureza da eficácia e a duração da proteção é preocupante, visto que há algumas indicações de que a eficácia da resposta imune está associada à duração da proteção. Se as pessoas não entenderem de fato o quão protetiva uma vacina é, há potencial para danos porque elas podem assumir que estão totalmente protegidas quando não estão e, consequentemente, mudar seu comportamento de forma a adotar mais riscos”, diz o governo dos Estados Unidos.
Quem é contra a estratégia ainda cita que a segunda dose pode aumentar as mutações do Sars-Cov-2 (em raciocínio similar ao uso de antibióticos por poucos dias) e incentivar a população a relaxar nos cuidados do vírus sob o risco de a proteção cair e a vacina ter efeito reduzido.
Retardar a aplicação da segunda dose da vacina de Oxford é uma estratégia viável, mas não é possível saber se o mesmo pode ser feito sobre a CoronaVac porque os detalhes acerca desta imunização ainda não foram divulgados, diz Eduardo Sprinz, chefe do setor de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
— Não vejo, neste momento, nenhum ponto negativo. O Brasil economizaria dinheiro, vacinaria mais rapidamente, protegeria melhor por meses os mais vulneráveis e sem que houvesse perda de eficácia. O poder de cobertura dobra. Eu diria que vale a pena aplicar apenas uma dose para a vacina de Oxford. Sobre a CoronaVac, não temos dados — diz Sprinz.
A Fiocruz, em nota divulgada após o anúncio de que solicitou o pedido de uso emergencial da vacina de Oxford, afirmou que, "segundo evidências apontadas pelos estudos, quando aplicada uma segunda dose com intervalo de três meses, a produção de anticorpos e da resposta imunológica aumentaria cerca de oito vezes”.
Aplicar um intervalo não estudado pelos laboratórios não é recomendado, mas, em meio a um cenário de poucas doses, a estratégia pode ser utilizada se for acompanhada de uma vigilância cuidadosa do governo, opina o doutor em microbiologia pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador de projetos educacionais do Instituto Questão de Ciência (IQC), Luiz Gustavo Almeida.
— A única empresa que de fato apresentou dados de uma única dose foi Pfizer, que anunciou 95% de eficácia com duas doses e, para uma dose, uma queda drástica de 52%. Mas a gente tem capacidade plena de acompanhar as pessoas com o DataSUS (sistema informatizado que guarda histórico de vacinação da população). Em primeiro momento, podemos adiar a segunda dose, mas, se isso não for eficaz, voltar para o plano original — diz o microbiólogo.
A professora de Imunologia na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e colunista de GZH, Cristina Bonorino, diz entender o desespero que move a decisão de adiar a segunda dose, mas é contra a estratégia.
— Existe uma razão para fazermos duas doses. Com uma dose, o organismo desenvolve uma resposta menor e menos duradoura. Esse é um principio básico da imunologia que ensinamos nas primeiras aulas da faculdade. Ao vacinar uma vez, tu aumentas o número de células de defesa específicas para combater o vírus, e essas células se multiplicam. Mas essas células começam, depois de uns dias, a morrer, então damos uma segunda dose para dar uma reforçada no número de células. Entendo que é uma emergência mundial, mas, para adiar uma segunda dose, precisamos ter estudos para isso —
Ela acrescenta que, pelo histórico de vacinas, cruzar doses de laboratórios não traz riscos à saúde, mas defende que sejam feitos estudos acerca da possibilidade. Hoje, há uma pesquisa para averiguar os efeitos do uso cruzado da vacina de Oxford e da Sputnik V.
— Em princípio, não teria risco intercambiar vacinas, mas como cientista, eu digo que teríamos que testar. A vacina contra a pólio existe da gotinha e a injetável. As duas funcionam, mas sabemos porque há estudos — acrescenta Cristina.
Em vacinas já utilizadas pela população, médicos aplicam a segunda dose mesmo se a primeira já tiver sido feita há muito tempo, explica Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), que é contra a estratégia de postergar o reforço e de cruzar imunizações contra o coronavírus.
— A gente procura evitar a intercambialidade de vacinas, mas isso se faz muito sem que haja interferência de resposta. Nas vacinas contra covid, se tenta evitar porque temos vacinas com tecnologias diferentes. Quanto a adiar a segunda dose, a experiência que temos é de que há queda na cobertura quando há mais de uma dose. Se o intervalo for longo, aumenta o risco de as pessoas esquecerem de tomar a segunda dose e de terem a falsa sensação de segurança de que só uma dose traz a segurança de duas — diz o médico.
Cunha acrescenta que a câmara técnica do Plano Nacional de Imunizações (PNI) pode alterar o esquema de aplicação e permitir que o governo forneça vacinas em um intervalo diferente do estipulado pelo fabricante.
— A Anvisa licencia de acordo com o solicitado pelos laboratórios, mas o PNI, através de suas câmaras técnicas, pode alterar esses esquemas. A vacina contra o HPV tinha um esquema de três doses e baixou para duas para adolescentes. Isso foi decidido pelo PNI — acrescenta o presidenta da SBIm.
Contatada por GZH, a Anvisa afirmou que, com o início da análise do pedido de uso emergencial do Butantan e Fiocruz, "ainda não conseguimos antecipar se as indicações vão definir intervalo máximo entre as doses. Isso depende do pedido e dos dados apresentados em cada processo".