O fato de os anticorpos diminuírem ao longo do tempo após a contaminação pela covid-19 não significa que a imunidade ao novo coronavírus ficou menor nem de que há mais chances de reinfecção. Isso é o que apontam especialistas ouvidos pelo Estadão para comentar estudo divulgado esta semana pelo Imperial College London.
Os pesquisadores britânicos rastrearam os níveis de anticorpos em 365 mil pessoas na Inglaterra após a primeira onda de infecções pela doença. Análises realizadas entre 20 de junho e 28 de setembro, por meio de teste sorológico, mostraram que a prevalência de anticorpos caiu, durante o período de estudo, de quase 6% para 4,4%.
— É um estudo muito relevante para entender a dinâmica da resposta ao vírus, mas a gente precisa entender que a resposta imunológica não se baseia somente em anticorpo. Tem resposta de célula também, que é muito importante. Os anticorpos são produzidos por essas células especialistas do sistema imunológico — explicou Mellanie Fontes-Dutra, pós-doutoranda em Bioquímica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Paulo Lotufo, professor de Epidemiologia da Universidade de São Paulo (USP), adota um tom mais crítico em relação ao estudo inglês.
— Acho falho. O sistema imune é altamente complexo. O anticorpo é um dos marcadores de um determinado momento em que houve a infecção. O fato de ter ausência do anticorpo não implica que você não esteja imune. Até porque temos informação há muito tempo de que existem as células de memória. Elas são de memória justamente por isso. Por que você vai ter um sistema produzindo o tempo inteiro anticorpo? Na hora em que aparecer o vírus, há enorme chance de os anticorpos serem produzidos — afirmou.
As células T e as células B são as responsáveis por avisar o organismo da existência de um vírus ou de uma bactéria. A primeira faz o alerta e a outra é responsável por produzir os anticorpos. Ainda não há um estudo que mostre o quão duradoura são a memória e a produção de anticorpos dessas células em relação ao novo coronavírus.
— Já era esperado que essa primeira onda de anticorpos tivesse diminuição. O que a gente precisa descobrir agora é como será a resposta celular para a produção de uma segunda onda. E isso só vamos saber em uma fase 4 (de estudos) da vacina (quando há imunização em larga escala). Somente depois que houver a vacinação em massa da população conseguiremos fazer esse estudo — diz Mellanie.
O estudo inglês, segundo os especialistas, justifica a baixa soroprevalência em parte da população que já teve a doença. Isso significa que durante pesquisas sobre coronavírus pode acontecer de as pessoas testarem negativas, mas já terem sido positivas em algum momento. Como o número de anticorpos caiu bastante, não é apontado como alguém que já tenha se infectado pela covid-19. O que também não significa, por outro lado, que essas pessoas não tenham imunidade.
Tanto é que a pesquisa informa que pessoas que tiveram a confirmação da covid-19 por meio do teste RT-PCR (considerado padrão ouro, de maior precisão) tiveram um declínio menos pronunciado nos anticorpos em comparação com aquelas que eram assintomáticas e desconheciam a infecção. Nos casos de quem teve a doença de forma mais branda, pode ser que o corpo nem tenha tido tempo para criar essas células de memória do vírus.
— Esse estudo não tem o impacto que foi dado: o de que você está tendo é perda da imunidade. Você tem redução de um marcador que faz parte da imunidade como um todo e que já se sabe que vai reduzindo com o tempo. A imunidade já foi criada. Se tiver contato com o vírus, serão produzidos imediatamente os anticorpos. Não é tão forte o dado (do estudo do Imperial College) como parece ser — opina Lotufo.
A vacina é a principal maneira de instruir o sistema imunológico a aprender a reconhecer o vírus. É o caminho para desenvolver anticorpos e criar estratégias para combater a doença sem ficar doente.
— Quando todos voltarmos a circular, imunizados, vamos nos expor. Nesse período é que vamos saber qual o percentual da população que precisa estar imunizada para o vírus diminuir a circulação e se tornar algo superadministrável, como outras vacinas que previnem outras doenças — concluiu Mellanie.
Outro estudo
O King's College, de Londres, publicou nesta terça-feira (27) estudo relacionado aos anticorpos do coronavírus - as informações haviam sido divulgadas de forma preliminar em julho. Agora revisado por outros cientistas, saiu em uma revista do grupo Nature e aponta que 95% dos pacientes analisados desenvolveram anticorpos contra o sars-cov-2 após o oitavo dia desde o início dos sintomas.
Assim como no estudo preliminar da Imperial College London, a concentração de anticorpos diminuiu ao longo do tempo. E a diminuição também foi proporcional à gravidade da doença. A pesquisa analisou 96 pessoas, sendo 65 pacientes e 31 profissionais de saúde que já haviam se recuperado do coronavírus.
As coletas foram feitas durante 94 dias após os primeiros sintomas. Embora alguns indivíduos com pico de dose infecciosa alto mantivessem os anticorpos após 60 dias, alguns com pico mais baixo tinham anticorpos próximos ao valor mínimo dentro do período de acompanhamento.
Os cientistas informaram que a queda dos anticorpos pode sugerir que uma dose de reforço seja necessária em algumas das vacinas contra a covid-19.