Depois de repercussão negativa entre secretários de Saúde e entidades ligadas à área, o presidente Jair Bolsonaro decidiu revogar o decreto que dava margem a parcerias público-privadas (PPPs) envolvendo Unidades Básicas de Saúde (UBS). A decisão foi confirmada pela Secretaria-Geral da Presidência da República no fim da tarde desta quarta-feira (28).
Sucinto, o decreto 10.530, assinado por Bolsonaro e pelo ministro Paulo Guedes (Economia), liberava estudos para a inclusão das UBS no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) do governo federal. Conforme o texto, a intenção era analisar “alternativas de parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios”.
Ainda segundo o documento, tais estudos teriam “a finalidade inicial de estruturação de projetos pilotos, cuja seleção será estabelecida em ato da Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos do Ministério da Economia”.
A decisão causou alvoroço em entidades de saúde. Para Guilherme Naves, sócio da Radar PPP, empresa especializada em desenvolvimento e assessoria estratégica de PPPs e concessões no Brasil, a repercussão negativa foi causada por falha na comunicação do governo, mas ele considerava a ideia acertada.
Presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Fernando Pigatto gravou vídeo criticando a decisão, que classificou como arbitrária.
— Neste momento, o que precisamos é fortalecer o Sistema Único de Saúde, esse sistema que tem salvado vidas. Estamos nos posicionando perante toda população brasileira como sempre nos posicionamos: contra qualquer tipo de privatização, retirada de direitos e fragilização do SUS — disse Pigatto.
O decreto também pegou de surpresa o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), que representa gestores estaduais. À frente do órgão, Carlos Eduardo Lula definiu o texto como “estranhíssimo”. Em reunião na tarde desta quarta-feira (28), a entidade havia decidido pressionar pela revogação da medida, o que acabaria ocorrendo.
— É uma loucura ter um decreto do Ministério da Economia para falar sobre atenção primária. É muito esquisito esse modelo, porque parece ser uma PPP (parceria público-privada), mas não deixa claro. A UBS em tese não é lucrativa para gerar investimento por parte da empresa — ponderou o representante em entrevista ao jornal O Globo.
No Rio Grande do Sul, a presidente do Conselho das Secretarias Municipais de Saúde (Cosems-RS), Claudia Regina Daniel, também viu a iniciativa com ressalvas.
— Uma decisão tão importante como essa deveria, no mínimo, ter envolvido conversação prévia. Ouvimos rumores, mas não pensamos que a medida começaria pela atenção primária, que fez um trabalho tão essencial durante a pandemia. O assunto nos trouxe muitas dúvidas — disse Claudia.
Dois especialistas consultados por GZH reforçaram as incertezas. Professor de Administração Pública da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Álvaro Guedes questionou a competência da União sobre o tema. Ele também lembrou que os municípios já vêm adotando, há anos, parcerias com organizações sociais de saúde para a gestão de unidades, com bons e maus resultados. Isso ocorre, por exemplo, em Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. Para Guedes, faltava esclarecer o decreto.
É preciso cuidado, porque é inconstitucional privatizar a saúde pública
ÁLVARO GUEDES
Professor de Administração Pública da Universidade Estadual Paulista (Unesp)
— Primeiro, estamos falando de UBS. Alguém precisa alertar a presidência da República e o seu staff de que a atenção básica é área de competência municipal. Pode haver conflito federativo. Em segundo lugar, estamos falando de PPPs ou de concessões? O governo jogou no ar algo que não se sabe exatamente o que é, de forma confusa. É preciso cuidado, porque é inconstitucional privatizar a saúde pública — afirmou Guedes, que já atuou como secretário municipal de Saúde.
Professor adjunto dos cursos de graduação, mestrado e doutorado em Administração Pública e Governo da Fundação Getulio Vargas em São Paulo, economista Nelson Marconi também questionava a validade de propor PPPs na área. Na avaliação dele, “uma coisa é uma organização social gerir os serviços, outra é uma PPP”.
No primeiro caso, segundo Marconi, a organização sem fins lucrativos recebe recursos públicos para fazer a gestão de um serviço. No segundo caso, o setor privado despende verbas para estruturar serviços e, em um segundo momento, obtém retorno sobre o investimento, o que pode ocorrer de diferentes formas. Marconi temia que o atendimento possa deixar de ser gratuito.
É razoável pensarmos em cobrança para serviços básicos de saúde? Os pobres teriam de pagar?
NELSON MARCONI
Professor adjunto dos cursos de graduação, mestrado e doutorado em Administração Pública e Governo da Fundação Getulio Vargas
— É razoável pensarmos em cobrança para serviços básicos de saúde? Os pobres teriam de pagar? Ou seria o próprio Estado? Nesse caso, valeria a pena? Não sou contrário a PPPs, mas não vejo por que aplicar nessa circunstância — disse Marconi.
Órgão federal garante que “gratuidade será mantida”
Por meio de nota, antes de Bolsonaro decidir-se pela revogação, o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) havia informado que o objetivo do decreto era “encontrar soluções para a quantidade significativa de Unidades Básicas de Saúde inconclusas ou que não estão em operação no país”. Segundo o órgão, o modelo de negócios seria elaborado junto ao Ministério da Saúde e ao BNDES, e só seriam selecionados “municípios ou consórcios públicos que demonstrem interesse nessas parcerias, sempre em conjunto com o poder concedente municipal e sob a orientação do Ministério da Saúde”.
A promessa era de que a proposta se iniciasse com projetos-piloto. Embora a nota oficial não detalhasse de que forma se daria a remuneração do investidor, o PPI garantia que “a gratuidade será mantida”. Conforme o comunicado, o decreto apenas previa que o governo federal estudasse "alternativas para apoiar Estados e municípios a multiplicar os bons exemplos que hoje ainda são poucos no país”.
Ainda segundo o texto enviado pela assessoria do PPI, não se trataria de "delegar ao privado as funções de Estado, mas de aprimorar a prestação de serviços, como previsto na Constituição Federal”.
No fim da tarde desta quarta-feira (28), antes da reviravolta, o Ministério da Economia emitiu outra nota destacando que a decisão envolvendo os postos havia sido tomada após pedido do Ministério da Saúde, entre outros motivos, porque havia "mais de 4 mil UBS com obras inacabadas", que "consumiram R$ 1,7 bilhão de recursos do SUS". Conforme o ministério, os serviços seguiriam "sendo 100% gratuitos para a população".
GZH entrou em contato com a assessoria do Ministério da Saúde, mas, até as 16h não havia recebido a posição da pasta sobre o tema.
O que é uma PPP?
A parceria público-privada (PPP) é um instrumento que remunera um parceiro da iniciativa privada — uma empresa ou um consórcio de empresas — para a realização de um serviço público. O poder público conta com o potencial de investimento do parceiro para eventuais obras e manutenção de um serviço. Em contrapartida, o parceiro ganha a segurança de um contrato milionário a longo prazo com retorno garantido.
Qual a diferença entre PPP, concessão e privatização?
- Concessões e PPPs são contratos administrativos entre o poder público e empresas privadas para criação de nova infraestrutura pública, combinada com sua manutenção e prestação de serviços
- Nas concessões, não há contrapartida do governo. A empresa faz os investimentos necessários, assume os riscos e se remunera por meio da cobrança de tarifas dos usuários. No final do contrato, os ativos concedidos voltam para o Estado, que pode administrá-los ou concedê-los outra vez
- Nas PPPs, a diferença é que existe contrapartida. Nesse caso, o poder público complementa a receita da empresa. É uma forma, inclusive, de tornar a tarifa para o serviço gratuita
- A privatização é diferente. Nesse caso, o governo vende ativos para a iniciativa privada, e os bens deixam de ter caráter público