Em 8 de agosto, o Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (HSL-PUCRS) iniciou, oficialmente, a aplicação de uma vacina experimental — e de placebo — em voluntários da pesquisa, que testa a segurança e a eficácia contra o coronavírus. Desenvolvida pela chinesa Sinovac, a vacina tem sua testagem conduzida no Brasil pelo Instituto Butantan, de São Paulo, em 12 centros de pesquisa no país.
Aqui no Estado, o objetivo é incluir 852 voluntários para receber uma dose da vacina ou placebo. Participam do trabalho apenas profissionais da saúde, preferencialmente moradores de Porto Alegre e região. A delimitação geográfica se justifica pelas diversas vezes que os voluntários precisam retornar ao centro de pesquisa do HSL para avaliações, que vão além das duas idas para receber as aplicações — no total, cada um precisa ir oito vezes ao local.
Fora as visitas ao centro de estudos, cada voluntário precisa preencher um diário, onde são feitas anotações detalhadas sobre seu estado de saúde. Informações como temperatura, administração de medicamento ou reação após a aplicação devem ser descritas minuciosamente. O preenchimento é obrigatório, mesmo que o profissional não tenha nada de excepcional a relatar.
As anotações são feitas em três etapas, conforme explica Michelle Viegas, coordenadora do estudo: após a primeira aplicação, o voluntário leva o exemplar para preencher em 15 dias. Quando faz a segunda aplicação, deixa o diário inicial e leva outro, com mais 15 dias. Na terceira visita ao centro, entrega o segundo e leva um terceiro, para preenchimento em mais 15 dias.
Nesta reportagem, contamos um pouco dessa rotina de três profissionais que atuam em grandes instituições da Capital e que tiveram o dia a dia modificado em razão do coronavírus. Todos participam do estudo realizado pelo HSL e, a seguir, compartilham um pouco da sua experiência como voluntários, descrevendo algumas anotações dos seus diários e relatando a expectativa de obter uma resposta positiva em relação à eficácia da vacina.
— Eles contribuem para o desenvolvimento de uma vacina de extrema importância. Tentar fazer com que ela chegue o mais rápido possível é uma forma de esperança para o mundo todo — avalia o infectologista Fabiano Ramos, médico que lidera o estudo no Estado.
"Gaúcho da Vacina"
Ele é o voluntário número um do braço gaúcho do estudo. Fez parte do pequeno grupo selecionado para iniciar a pesquisa em 8 de agosto, quando recebeu a primeira aplicação diante de uma dezena de jornalistas que acompanhavam e transmitiam o momento do terceiro andar do HSL-PUCRS.
Luciano Marini, 49 anos, é intensivista da ala dedicada aos pacientes com covid-19 do HSL. Inscreveu-se como voluntário da pesquisa que vai incluir cerca de 9 mil profissionais da saúde em todo o Brasil em meados de julho e recebeu a notícia de que fora selecionado para o estudo em 5 de agosto. Antes do início das aplicações no Rio Grande do Sul, a equipe do centro de pesquisa entrou em contato com o médico para assegurar que ele tinha interesse em participar do estudo e confirmar a data do procedimento.
Como voluntário, vejo a oportunidade de ajudar as pessoas a voltarem às suas vidas normais, caso a vacina mostre-se eficaz
LUCIANO MARINI
Médico intensivista do HSL
— Fiquei grato em poder participar. Como voluntário, vejo a oportunidade de ajudar as pessoas a voltarem às suas vidas normais, caso a vacina mostre-se eficaz — diz.
Por trabalhar diretamente com pessoas infectadas pelo coronavírus, foi testemunha de histórias marcantes. Sem precisar pensar muito, lembra com detalhes do primeiro paciente com a doença atendido no setor do HSL, ainda em março. Era um homem de 42 anos, com outras doenças associadas, e que estava com a saturação muito baixa:
— A gente não tinha muita experiência com esses pacientes ainda, e precisava tomar a decisão de entubar. Tinha toda uma equipe fora esperando para assistir o primeiro procedimento desses. Ele (paciente) me chamou no leito e falou: “Pode fazer, doutor, pode me entubar. Vocês estudaram para isso, eu confio na equipe”. E depois, ele completou: “Boa sorte no procedimento”. Isso quase me levou às lágrimas.
Embora a permanência estimada do paciente na UTI fosse de duas semanas, o homem acabou internado por 45 dias e saiu recuperado. Esse foi um dos motivos pelos quais se voluntariou. Ademais, teme a própria contaminação e as consequências que isso pode trazer.
— A gente tem o risco de se infectar e de levar isso para as nossas famílias — argumenta.
A primeira dose administrada no braço direito do médico foi precedida pelo preenchimento do chamado termo de consentimento, que, entre outras coisas, esclarece os objetivos da pesquisa, métodos usados e critérios de inclusão e exclusão — é como um “contrato” entre o voluntário e a equipe. Também passou por exames para atestar que não havia sido exposto ao vírus, pré-requisito para ser incluído no estudo. No domingo (9) seguinte à aplicação, o médico deu início ao diário, que manteve até a segunda dose de vacina ou placebo, administrada no último dia 24.
— Como permaneci assintomático, só assinalei “não tive” nas alternativas — relata.
Depois dessa data, recebeu um novo diário, no qual também não relatou alterações.
Desde a primeira aplicação, virou uma “celebridade” entre os colegas, que brincam com o assédio recebido pelo médico. A zoeira é tamanha, que fizeram um cartaz de Marini sendo lançado como candidato a vereador.
— O vereador é o “Gaúcho da Vacina” — diverte-se.
Um número!
Tornar-se parte de uma pesquisa inverte a lógica até então estabelecida na medicina. Via de regra, durante sua formação e carreira, um médico utiliza estudos e artigos para adquirir conhecimento sobre determinado tema. Ao participar de um trabalho desses, mudam-se os papéis.
— É um momento histórico que vai ficar pra sempre. Nunca imaginei que participaria de um estudo. A gente estuda, lê os artigos, mas ser um número... Eu sou um número! Só não vou te falar qual! — ri Alice Becker Teixeira, 34 anos. — Vou fazer história, literalmente. É como quando a gente vira paciente, muda a perspectiva.
Anestesista do Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre, e do Hospital Municipal (Geral) de Novo Hamburgo, ambos referência no atendimento de pacientes com covid-19, a profissional, não pestanejou na hora de fazer sua inscrição para participar do estudo, refutando as reações "apavoradas" de alguns colegas que desconfiam de um produto oriundo da China. Ela defende que o país asiático tem boas universidades e cientistas sérios, o que assegura a qualidade das doses desenvolvidas pela companhia chinesa.
— Confio mais neles do que nos russos — justifica.
As pessoas acham que é só vir aqui receber a vacina. Que nada. É bastante doação em prol da ciência
ALICE BECKER TEIXEIRA
Anestesista do Conceição e do Hospital Geral de Novo Hamburgo
Ela atua na linha de frente e maneja diariamente pacientes infectados. Seu trabalho consiste em administrar anestesia em pacientes com a covid-19 antes da realização de determinados procedimentos, como traqueostomia e drenos de tórax, por exemplo. Fora o fato de estar diretamente exposta ao vírus, Alice também se candidatou por sentir extrema confiança no trabalho da equipe de pesquisa, coordenada pelo infectologista do HSL Fabiano Ramos.
A primeira dose foi administrada no braço direito de Alice em 18 de agosto. Suas anotações diárias iniciaram no dia seguinte:
— Não senti nada, nem dor local. Zero a zero. Não tive nem dor de cabeça, que costumo ter — conta, acrescentando que a ferramenta pergunta de tudo: desde a temperatura diária, passando por qualquer indício de vermelhidão no local, até sinais como coriza ou perda de olfato.
Sem nenhuma alteração nos dias subsequentes, as notas se resumiram às medições de temperatura, que variaram pouco, de 36,3°C a 36,6°C. No entanto, a uma semana de receber a segunda aplicação, o caderninho recebeu relatos diferentes. Dessa vez, a médica descreveu uma dor de cabeça no fim do dia, enquanto estava em casa. O problema foi remediado com um comprimido de paracetamol. Em sua percepção, no período pós-aplicação, teve menos episódios de dores de cabeça do que o habitual, e considera essa anotação um caso isolado e sem relação nenhuma com o estudo. Depois desse registro, a anestesista não escreveu nada incomum.
Na manhã do primeiro dia de setembro, Alice retornou ao centro de pesquisa. Lá, foi submetida a novos exames antes de proceder com a aplicação, desta vez, no braço esquerdo. Uma reação diferente já foi logo percebida pela médica:
— Ardeu, diferentemente do que ocorreu na primeira vez — conta.
Enquanto deixava o centro de pesquisa, fez um desabafo:
— É uma função participar. Ficamos no local duas ou três horas, coletamos sangue, temos consulta... Depois tem o swab nasal em cada narina... Dói, não é fácil. As pessoas acham que é só vir aqui receber a vacina. Que nada. É bastante doação em prol da ciência.
A diferença
Funcionária do Serviço de Hemodinâmica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, a técnica de enfermagem Clair Soares Nascente, 50 anos, não conseguia sequer identificar o ponto do braço que recebera a agulha da aplicação realizada em 18 de agosto. Caso apresentasse vermelhidão ou edema, deveria medir o tamanho da marca, conta. Tal registro não foi necessário.
Antes de ser submetida à aplicação, Clair acreditava que não seria aprovada, pois teve contato próximo com pessoas contaminadas. Imaginava que já tinha sido infectada, porém sem nenhuma manifestação da covid-19.
Os testes pelos quais passou antes da aplicação, no entanto, afastaram essa hipótese, liberando a técnica de enfermagem para prosseguir no estudo.
Como trabalha no chamado turno intermediário, das 19h20min até 1h45min, optou por preencher o diário sempre à meia-noite. Logo na primeira anotação, no dia seguinte ao da aplicação, relatou o uso de um antibiótico. Pouco tempo depois, na quinta (20), descreveu dias com dor de cabeça, que evoluiu para uma enxaqueca que duraria três dias. Também detalhou desconforto abdominal, dor no estômago e azia.
Eu nasci para cuidar de gente, para doar minha vida para as pessoas. Quando resolvi participar do estudo, nem pensei. Só disse: “Eu vou, eu quero fazer a diferença”
CLAIR SOARES NASCENTE
Técnica de enfermagem do Hospital de Clínicas
— Na sexta (21), quase não consegui terminar meu turno de trabalho, tanta era a dor de cabeça e o desconforto estomacal. No sábado, fiquei muito ruim. Como estava de folga, preferi repousar e ficar quietinha dentro de casa. E passou. Não tive febre nem falta de ar — descreve.
Todos os sintomas, acredita, são resultado do medicamento que tomou. Na segunda (24), voltou normalmente ao trabalho, onde permaneceu por mais dois dias, até ser afastada por suspeita de infecção por coronavírus depois de novos episódios de dores estomacais e mal-estar. Precisou fazer um exame PCR para verificar se estava ou não infectada. Entre a coleta e o resultado do exame, Clair teve de se afastar do trabalho, um procedimento de segurança padrão. No último dia 28, Clair recebeu o resultado do teste. Ele confirmou que ela não estava contaminada.
Fora os episódios de mal-estar, Clair não incluiu nada além do que foi perguntado nesse primeiro diário, que foi entregue à equipe de pesquisadores na quinta-feira (3), quando a técnica de enfermagem fez a segunda aplicação.
Como a doação ao próximo faz parte da sua profissão, Clair afirma que não pensou muito na hora de fazer sua inscrição como voluntária, pois tem certeza que cada participante tem papel fundamental nesse momento:
— Eu nasci para cuidar de gente, para doar minha vida para as pessoas. Quando resolvi participar do estudo, nem pensei. Só disse: “Eu vou, eu quero fazer a diferença”. Estou muito feliz, quero que dê certo, quero ser importante para essa pesquisa. Quero muito que eu receba a vacina, e não o placebo.
Vacinômetro
Maior desafio da história recente, a pandemia de coronavírus provocou uma corrida sem precedentes para o desenvolvimento de uma vacina. Conforme o último relatório divulgado pela Organização Mundial da Saúde, há 176 pesquisas em andamento em todo o mundo. Dessas, 34 já são testadas em humanos, e nove estão na última fase, na qual são testadas a eficácia e a segurança em número grande de voluntários.
O estudo da Sinovac no Rio Grande do Sul já fez aplicações em mais de 300 voluntários. Conforme o Butantan, ainda não é possível estabelecer prazo para o fim dos testes nem para a disponibilização da vacina. No entanto, a expectativa é ter resultados preliminares divulgados ainda neste semestre. Quando os primeiros dados estiverem prontos, eles serão enviados para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a fim de obter o registro.