A declaração do presidente Jair Bolsonaro de que "ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina", proferida no último domingo (31), preocupa profissionais da saúde pelo risco de menosprezar a importância das imunizaçõees e de incentivar movimentos antivacina. A fala ocorreu no dia em que o país alcançou mais de 120 mil mortos pelo coronavírus – é o segundo país com mais vítimas, atrás dos Estados Unidos.
Bolsonaro não se opôs à vacina em si, mas contra a obrigatoriedade de brasileiros a tomarem. Posteriormente, o perfil da Secretaria de Comunicação (Secom) do Planalto divulgou em uma rede social a declaração do presidente e acrescentou: “O governo do Brasil investiu bilhões de reais para salvar vidas e preservar empregos. Estabeleceu parceria e investirá na produção de vacina. Recursos para Estados e municípios, saúde, economia, TUDO será feito, mas impor obrigações definitivamente não está nos planos”.
A declaração contradiz norma sancionada por Bolsonaro: a lei nº 13.979/20, conhecida como "Lei do Coronavírus”. O texto diz que o governo poderá adotar a “determinação de realização compulsória” de exames, testes, coletas laboratoriais e vacinação. O texto foi assinado pelos ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Sergio Moro, e pelo próprio presidente da República.
A fala de Bolsonaro também ignora o fato de que, no Brasil, certas vacinas são obrigatórias desde 1975, quando o país criou o respeitado Programa Nacional de Imunizações (PNI). A medida consolidou o país como referência mundial em saúde pública.
A lei diz que cabe ao Ministério da Saúde definir as vacinas, “inclusive as de caráter obrigatório”, sem especificar se o público é de adultos ou crianças. O PNI resultou em uma lista, atualizada todos os anos, chamada de Calendário Nacional de Vacinação, que lista as doses oferecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
— Ninguém vacina tanta gente com tantas vacinas como o Brasil. O governo federal dizer uma coisa dessas, não dá para entender. Se tem uma vacina altamente eficaz, como pode ser contra a vacina? — disse o médico Drauzio Varella, colunista de GZH, em entrevista à Rádio Gaúcha na tarde desta quarta-feira (2).
Em 2020, são mais de 40 proteções oferecidas em postos de saúde para bebês, crianças, adultos e idosos – incluem vacinas contra tuberculose, sarampo, febre amarela e gripe. Teoricamente, todas são obrigatórias para brasileiros, mas, na prática, se exige apenas que crianças as tomem.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) demanda que pais vacinem os filhos, sob pena de multa ou perda da guarda. O cumprimento costuma ser efetuado em consultas médicas (o profissional cobra as doses) ou nas escolas, que exigem vacinação em dia na hora da matrícula.
"Vacinar é solidariedade"
José Roberto Goldim, chefe do serviço de Bioética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), teme que a declaração do presidente desperte desconfiança contra vacinas e o programa de vacinações, que chega a entrar na casa dos brasileiros para aplicar doses.
— A vacinação no Brasil tem grande adesão populacional. Nos dias de vacinação, há um esforço da área da saúde, com apoio de inúmeros setores – é dia de passe livre de ônibus. Isso é um voto de confiança no sistema de saúde, mas essa manifestação (do presidente) pode minar a confiança da população. Vacinar é uma rede de solidariedade que precisa ser mantida. O ECA fala que é dever dos pais vacinar as crianças como dever de protegê-las. A criança é vulnerável, mas, na medida em que a pandemia torna todos vulneráveis, o dever de tomar vacina é de todos para com todos — opina Goldim.
A declaração do presidente joga luz sobre uma preocupação que não reflete os hábitos dos brasileiros, uma vez que o Brasil é referência mundial pela alta cobertura vacinal, salienta a pediatra e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Isabella Ballalai.
— A estratégia principal do Brasil para chegar a altas coberturas vacinais nunca foi a obrigatoriedade, mas boa comunicação, estrutura adequada e quantidade de vacinas adequadas. A questão da obrigatoriedade começou a virar discussão quando a cobertura vacinal começou a cair a partir do aumento de pessoas contra vacinas, que são poucas no país. O brasileiro tem excelente relação com vacinas. Temos grandes coberturas vacinais da gripe sem obrigar ninguém a vacinar, por exemplo — afirma Isabela.
A capacidade de vacinas funcionarem depende da grande adesão a uma futura campanha, destaca o professor de Infectologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Alexandre Zavascki.
— Doenças de notificação compulsória, como tuberculose, sarampo e a própria covid, são transmissíveis, portanto, não interessam só para o doente, mas também para a coletividade, porque formam a imunidade de rebanho. À medida em que tenho uma proporção “x” de pessoas imunizadas, a doença protege inclusive quem possa eventualmente não ter se vacinado, porque as pessoas à sua volta estarão imunes — afirma Zavascki.
O que dizem juristas
A declaração de Bolsonaro passa ao largo do fato de que vacinas obrigatórias são aceitas no Brasil há décadas, afirma Pedro Adamy, professor de Direito Constitucional da PUCRS. Ele destaca que, na letra da lei, o Plano Nacional de Imunização deixa em aberto a possibilidade de cobrar adultos a serem vacinados, e não somente crianças.
— Em questões sanitárias, a princípio o interesse público se sobrepõe ao direito individual. Cabe ao Ministério da Saúde definir, com base em critérios científicos, quais vacinas são obrigatórias, inclusive para a população adulta. Se cabe ao Ministério definir o que é obrigatório, também cabe dizer o que não é. A frase do presidente pode ser entendida como sinalização de que o ministério não vai entender como obrigatória a vacinação contra o coronavírus — afirma Adamy.
Adota entendimento distinto Daniel Falcão, professor de Direito Constitucional do Instituto de Direito Público (IDP), de Brasília. Ele questiona: e se o Ministério da Saúde obrigasse os brasileiros a tomarem a vacina russa, que desperta desconfiança na comunidade científica internacional?
— Vamos dizer que o Estado baixe uma lei para tomar a vacina russa. Será que as pessoas vão se sentir à vontade para tomar? Mesmo na perspectiva da coletividade, fica muito difícil o Estado obrigar alguém a tomar um medicamento contra a própria vontade se a pessoa não for menor de idade — questiona Falcão.