– A gente fica naquela angústia porque está longe de casa, tem um filho. A espera é complicada, mas deixo tudo nas mãos de Deus. Quem sabe daqui a pouco aparece um coração que é para mim.
O relato de ansiedade e espera é o de quem, há cerca de dois anos, aguarda por um transplante de coração. As palavras de Roberto Carlos Bernardi, 52 anos, traduzem o sentimento de pacientes que precisam aguardar pelas condições ideais para receber um novo órgão, procedimento que pode salvar ou mudar vidas.
Esse cenário ganhou novos contornos em 2020, com a chegada da pandemia de coronavírus que causou alterações profundas na rotina dos hospitais. Uma das referências no país nesse tipo de cirurgia, o Rio Grande do Sul viu o número de transplantes cair nos primeiros sete meses deste ano.
Dados obtidos por GaúchaZH junto à Central de Transplantes do Estado mostram que o número de transplantes de órgãos e de tecidos caiu 39,20%. Entre janeiro e julho deste ano, foram 794 procedimentos do tipo realizados, contra 1.306 no mesmo período do ano passado.
Observando os dados mês a mês, é possível notar que a queda se inicia em abril, o primeiro mês completo de reflexos causados pela pandemia. Se considerado apenas o período entre abril e julho, a diminuição chega a 60%: o número baixou de 780, em 2019, para 312, em 2020.
Um dos motivos é a diminuição do número de notificações, que são as informações repassadas à Central de que há um possível doador. Entre janeiro e julho, o número caiu 12,63% na comparação com o mesmo período de 2019 – foram 339 em 2020 contra 388 no ano anterior. Segundo a coordenadora da Central de Transplantes, Sandra Lúcia Coccaro de Souza, muitas pessoas têm evitado procurar atendimento, mesmo com sintomas neurológicos, por medo de contrair covid-19. Assim, acabam morrendo em casa, o que inviabiliza a doação – na maioria dos tipos de transplantes, o procedimento só é feito quando o doador tem a morte encefálica confirmada.
– Elas não chegam a ter a chance de doar. Além disso, como foram instauradas medidas para diminuir a saída de casa, há menos acidentes, e os traumatismos cranioencefálicos são as principais causas que levam às doações de órgãos – explica.
Com isso, o número de doadores efetivos, que são os pacientes em condições de doar, também caiu, de 141 para 116 – redução de 17,73%. O total de doadores com órgãos transplantados, que são aqueles que efetivamente passaram pelo procedimento, sofreu uma consequente diminuição. O número passou de 114 para 101, o que representa queda de 11,4%.
Efeito nos hospitais
Após o início da pandemia, os principais programas do Estado reduziram o número de transplantes em uma tentativa de direcionar os esforços. A Santa Casa, o Clínicas e o São Lucas, da PUCRS, que são considerados referências na área, tomaram a medida, priorizando casos de urgência e atendendo, na medida do possível, os demais casos.
Na Santa Casa, o número de transplantes caiu 19,74%, passando de 385 para 309 entre janeiro e julho (o hospital retomou nesta semana os procedimentos eletivos pediátricos, mas mantém restrições para adultos). No Clínicas, houve redução nos procedimentos envolvendo coração, pulmão e rim – este último, na ordem de 40%. As duas instituições reduziram os transplantes a partir de julho.
“As equipes tiveram de aprender a selecionar quem transplantar, quem mais precisa. Foi uma queda, um baque muito grande.”
SANDRA LÚCIA COCCARO DE SOUZA
Coordenadora da Central de Transplantes
Já o São Lucas prioriza os casos mais urgentes desde o início da pandemia – a instituição realiza apenas transplantes de rins. A queda no número de procedimentos chega a 31,43%, passando de 35 para 24.
Presidente do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, Roberto Manfro lembra que, além de os serviços de saúde ficarem voltados ao enfrentamento do coronavírus, os hospitais precisam pensar na segurança dos pacientes:
– Essa equação é bem delicada, temos que ter muito cuidado para não expor o paciente a um risco desnecessário. É preciso avaliar se o momento é adequado, saber se o transplante pode ser feito com segurança e resultar em sucesso rapidamente. É uma equação longa, montada a cada oferta – explica o médico, que também é chefe do Serviço de Transplantes do Hospital de Clínicas.
Todos os doadores precisam ter teste RT-PCR negativo para covid-19 em até 48 horas. No início, as equipes não tinham testes disponíveis, e os pacientes eram selecionados pelo histórico clínico e epidemiológico. Até agora, 22 doadores tiveram os órgãos e tecidos inviabilizados: 16 foram considerados suspeitos e outros seis tiveram o diagnóstico confirmado. Nos primeiros meses, no entanto, transplantes chegaram a ser descartados por falta de tempo para a realização do exame:
– (Acontecia) Quando a gente não tinha teste para todo mundo, ou tinha pessoas no interior do Estado, já que os testes eram feitos em Porto Alegre. Com o passar do tempo eles foram sendo disponibilizados. Mas no início foi assim: existiam problemas sérios por falta de transporte e chegada do teste – conta Sandra.
Aprendizado
A coordenadora da Central de Transplantes acredita que, desde o início da pandemia, as equipes tenham aprendido a lidar com situações diferentes. Assim, os percalços que foram surgindo foram sendo resolvidos, e mais protocolos de segurança passaram a ser adotados.
– As equipes tiveram de aprender a selecionar quem transplantar, quem mais precisa. Foi uma queda, um baque muito grande, e o cuidado das equipes é fundamentalmente o pós-transplante. A gente mantém aquele paciente sob condições estritas em uma UTI, mas que pode eventualmente receber alguma contaminação. Esse controle pós-transplante é o grande desafio. Nós estamos trabalhando com muita cautela, muita segurança, e é importante que as famílias acreditem e doem os órgãos dos falecidos.
“Não sei como vai ser minha resposta na hora em que me chamarem, mas estou aí, tenho que encarar. É algo que eu preciso se quiser viver mais.”
ROBERTO CARLOS BERNARDI
Vendedor aposentado que aguarda por um transplante de coração
Uma pesquisa da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos identificou queda de 6,5% no número de doadores no país no primeiro semestre deste ano. O Rio Grande do Sul, como referência nacional, teve um bom resultado, ficando em quarto lugar no número de doadores efetivos por milhão de população (atrás apenas do Paraná, Santa Catarina e São Paulo).
Manfro alerta que a situação de outras regiões brasileiras acabou impactando indiretamente no Estado gaúcho, mas que o fato de os programas terem sido mantidos em funcionamento é um ponto bastante positivo.
– Nós tínhamos um fluxo muito grande de órgãos que vinham de outros lugares. Esse é um recurso que diminuiu, porque não há logística. A própria malha aérea não está mais disponível como antes. Mas os programas continuam ativos, e há um mérito enorme nisso, porque há muitos estados e países que pararam os transplantes. Estamos fazendo com que o prejuízo seja o menor possível.
“Tenho que encarar”
Morador de Sananduva, no norte gaúcho, Roberto Carlos Bernardi, 52 anos, precisou se mudar para Porto Alegre em março. Ele é portador de uma doença chamada miocardiopatia dilatada, uma dilatação do coração que faz com que a capacidade de bombeamento de sangue seja reduzida. O vendedor aposentado precisou colocar um marca-passo há oito anos, mas, há dois, entrou na lista de transplantes:
– O que eu sinto mais é cansaço. Tenho que cuidar muito da minha alimentação, ingerir pouco sal e não comer demais para não sobrecarregar o coração, que está fraco. Não posso caminhar muito e para tomar banho é complicado, cansativo, mas estou indo.
Quando teve arritmia, em março, foi transferido para Porto Alegre para se tratar no Instituto de Cardiologia. Com a esposa, Elaine, mudou-se para a Pousada da Solidariedade, que acolhe famílias de vários Estados do país que aguardam por transplantes. O local é administrado pela ONG Viavida, que se mantém com doações.
O hospital informou que os transplantes são uma prioridade e que são realizados normalmente, sem interrupções, mas com adaptações necessárias em razão da pandemia. Mesmo com o receio do período atípico, Roberto mantém a fé:
– Eu estou no topo da prioridade, mas complicou porque as ruas têm menos movimento e o doador precisa estar livre do coronavírus. Eu preciso de um coração bem compatível comigo, porque ainda sou uma pessoa jovem. Teve uma época em que eu estava bastante apavorado, porque um transplante não é fácil. Mas agora eu estou tranquilo. Não sei como vai ser minha resposta na hora em que me chamarem, mas estou aí, tenho que encarar. É algo que eu preciso se quiser viver mais.