"Aqui está sendo construída a Casa dos Raros." Este anúncio, escrito em uma placa colorida em frente a uma construção no bairro Santa Cecília, marca um novo serviço de saúde previsto para operar nos próximos anos em Porto Alegre. Idealizada por duas entidades, a casa se propõe a atender pacientes que, muitas vezes, vivem anos sem o diagnóstico correto de seu problema de saúde: aqueles que possuem doenças raras.
— A ideia da casa é justamente ser um lugar onde o paciente possa chegar e ter tudo. Hoje ele peregrina por diferentes locais, postos de saúde. Vai em um lugar fazer eletrocardiograma, em outro consultar com geneticista, em outro fazer outro exame. E queremos que ele tenha toda a jornada de tratamento nesse local — relata o médico e geneticista Roberto Giugliani, idealizador do projeto.
Segundo o Ministério da Saúde, cerca de 13 milhões de pessoas possuem alguma doença rara no país. Até agora, em torno de 8 mil já foram catalogadas. Uma doença é considerada rara pela Organização Mundial da Saúde quando afeta até 65 pessoas em cada 100 mil. Estima-se que 80% deste tipo de enfermidade tenha causa genética.
A Centro de Atendimento Integral e Treinamento em Doenças Raras surgiu de uma parceria entre o Instituto Genética Para Todos, ONG gaúcha presidida por Roberto Giugliani, e a Casa Hunter, instituição sem fins lucrativos de São Paulo que busca garantir soluções para os portadores de doenças raras. O centro será o primeiro do país, mas a proposta é que seja levado para todas as regiões nos próximos anos – já há projeção de uma unidade paulista.
O projeto foi idealizado há dois anos. Conforme Giugliani, que também é professor da Universidade Federal do RS (UFRGS) e trabalha no Hospital de Clínicas, o espaço contará com diferentes locais para consultas, procedimentos, exames e diagnóstico, além de um laboratório com equipamentos. Um deles é um espectrômetro de massas em tandem, capaz de identificar moléculas que outros exames não captam e que permite descobrir até 70 tipos de doenças raras.
— A proposta é ser algo inovador, em um modelo que ainda não existe no país. Cada doença tem uma peculiaridade, e é preciso conhecê-las. Quando o geneticista examina, já consegue levantar uma suspeita. Em outros locais, os médicos dificilmente já viram um caso como aquele, então é difícil diagnosticar — explica o médico.
A área de terapia genética também estará em foco no empreendimento. A terapia consiste em uma técnica de tratamento que "corrige" determinados genes responsáveis pela doença rara, eliminando a patologia. A casa também vai oferecer treinamento a profissionais.
A proposta é atender pacientes de todo o Brasil e, inclusive, de outros países da América Latina. Os idealizadores vão buscar parcerias para que, além de atendimentos privados, a casa possa atender por convênios e pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
A Secretaria Municipal de Saúde (SMS) se manifestou por meio de nota afirmando que acompanha o projeto desde 2018. A SMS diz que "apoia a iniciativa, inclusive dando anuência para o projeto junto ao Ministério da Saúde".
Construção e investimento
As obras começaram em junho deste ano no terreno localizado na Rua São Manoel, 722, no bairro Santa Cecília – os trabalhos são permitidos durante a pandemia por serem considerados serviço de saúde. A previsão é de que a construção seja concluída no fim de 2021, com início dos atendimentos em 2022.
Por enquanto, os trabalhos são iniciais. Quando concluído, o prédio terá 1,6 mil metros quadrados. Serão duas torres com quatro pavimentos.
O custo para a construção do prédio é de cerca de R$ 8 milhões, e o mesmo montante será necessário para a compra de equipamentos e mobília. As entidades já arrecadaram parte desse valor, doado por empresas e pessoas físicas.
Clínicas como modelo
Médico do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Giugliani criou o Serviço de Genética Médica da instituição na década de 1980 – o local é um dos centros de referência em doenças raras no país. Atualmente, foi uma das inspirações para a Casa dos Raros:
— Quando o paciente consegue chegar, ele tem um atendimento excepcional. Mas a gente precisava de um lugar onde ele tivesse mais acesso e pudesse chegar independentemente do SUS ou não. Como Porto Alegre já tem muita experiência na área com o Clínicas, achamos que era o melhor lugar para colocar a ideia em prática.
A chefe do setor, Lavinia Schuler-Faccini, comemora a criação de um centro para tratamento desse tipo de patologia. Para ela, além de ser um benefício para os pacientes, a casa vai possibilitar troca de conhecimento e formação de novos profissionais:
— Sendo o único centro de referência do Rio Grande do Sul para este assunto, temos filas de espera muito grandes. Vemos com muita alegria e satisfação que aumentem os serviços no Estado nesta área. O professor Roberto foi quem criou o serviço de genética no Clínicas quando poucos falavam nisso. É uma área de estudo que ainda vai crescer muito.
"A senhora tem uma raridade em casa"
Deise Zanin, 36 anos, nasceu com um problema ortopédico e precisou passar por cirurgia. Nos primeiros anos de vida, no entanto, outros sintomas apareceram: contraturas, problemas de visão – ela chegou a fazer um transplante do olho esquerdo – e nas mãos.
À época moradora de Ibiraiaras, no norte gaúcho, ela sempre teve os sintomas tratados de forma isolada. Por conta disso, foram muitas cartelas de anti-inflamatórios. Somente com 17 anos consultou um oftalmologista em Porto Alegre que desconfiou de uma doença rara:
— Estávamos eu e minha mãe e ele disse "mãe, a senhora tem uma raridade em casa". Foi ele quem me encaminhou para o geneticista, que consegui contatar depois de muita luta. Eu tinha 20 anos quando saiu o meu diagnóstico para mucopolissacaridose. Foi o dia em que o medicamento que uso foi liberado no Brasil.
Deise se tratou com Giugliani e passou a fazer acompanhamento profissional. Hoje morando em Porto Alegre, ela é presidente do Instituto Atlas Biosocial, que oferece suporte a familiares e pacientes com doenças raras.
— A Casa dos Raros é um passo grandioso para os pacientes e suas famílias. Quanto mais precoce o diagnóstico, melhor. Quando mais falarmos sobre isso, as pessoas terão conhecimento sobre o assunto e saberão a quem procurar — comemora.