Enquanto vive medidas de restrição social, o Rio Grande do Sul corre para abrir espaço em seus hospitais com o objetivo de salvar futuros pacientes em estado gravíssimo de coronavírus. Estatísticas internacionais apontam que 80% das pessoas terão sintomas leves e conseguirão se recuperar após descanso em casa por 15 dias. No entanto, outras 15% ficarão em estado grave e mais 5% ficarão em estado gravíssimo, o que exigirá internação em um leito de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) por até duas semanas. São esses 5% que preocupam autoridades.
Hoje, com uma população estimada de 11,3 milhões de pessoas, o Rio Grande do Sul conta com 3,2 mil leitos de UTI públicos e privados, dos quais 1.630 são exclusivos para tratamento de adultos, segundo análise de fevereiro do Conselho Regional de Medicina do RS (Cremers) sobre dados do Ministério da Saúde. A outra metade é destinada a tratar casos graves de recém-nascidos, crianças, pacientes que realizaram cirurgia no coração ou que sofreram queimaduras graves.
A maioria das vagas é destinada a pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS), o que aumenta a margem de atendimento à população mais pobre. Ainda assim, há consenso entre médicos de que faltam leitos de UTI no Estado — proporcionalmente, a oferta é menor do que a média nacional, segundo estudo de 2018 do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Ter poucas vagas para internar pacientes em estado gravíssimo é um dos maiores desafios se o coronavírus tiver ritmo rápido como na Itália. Além da baixa cobertura, a ocupação dessas vagas é próxima a 100%, segundo a secretária estadual da Saúde, Arita Bergmann. A realidade não é exclusiva daqui, mas comum no Brasil, onde a ocupação é de 80% em hospitais privados e acima de 95% em instituições públicas, segundo a Associação de Medicina Intensivista Brasileira (Amib).
Porto Alegre, pelo contrário, tem boa cobertura: é a sexta capital com maior oferta de leitos de UTI. Hoje, são 917 leitos de UTI, dos quais 610 são destinados a adultos, segundo a Secretaria de Saúde da Capital. A concentração alta é favorecida pelos hospitais universitários da cidade, como Hospital de Clínicas, Santa Casa de Misericórdia, que tem convênio com a Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), e Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS).
Para fazer frente à epidemia, o governo do Estado já orientou médicos, inclusive de convênio, a desmarcarem cirurgias não emergenciais a fim de liberar leitos. O segundo movimento foi o decreto de calamidade, que permite pegar leitos de UTI de hospitais privados para tratar pacientes do SUS.
O terceiro passo do governo é criar 218 novos leitos de UTI. O cálculo toma como base projeção do Departamento de Economia e Estatística (DEE), segundo a qual o Rio Grande do Sul teria, por volta de 6 de abril, 4.340 casos de coronavírus se a epidemia crescer a um ritmo italiano (pior cenário possível). Se 5% dos pacientes ficarem em estado gravíssimo, haveria uma nova demanda de 217 novos leitos.
Médicos alertam que o número necessário é hipotético, porque baseado em uma projeção da Itália aplicada ao cenário brasileiro. É verdade que o Rio Grande do Sul tem alta população de idosos — cerca de 20% de todos os gaúchos, segundo cálculos do DEE — e inverno rigoroso. Por outro lado, as medidas de isolamento foram postas em prática antes do crescimento exponencial da epidemia: Porto Alegre começa nesta quarta-feira (25) a proibir os mais velhos de sair de casa e a expectativa é de que o outono tenha temperaturas acima da média e o inverno não seja rigoroso, segundo o meteorologista Cleo Kuhn, do Grupo RBS.
Qualquer aumento de leitos é desejável, mas apenas a criação de novas vagas não resolve todos os problemas, avalia Fabiano Nagel, médico intensivista do Hospital das Clínicas de Porto Alegre (HCPA), onde organiza o atendimento a pacientes de coronavírus, e do Grupo Hospitalar Conceição (GHC).
— Esses leitos precisam de recursos humanos e materiais. Atualmente, não estão disponíveis para compra no mercado os equipamentos para leitos de UTI. Recursos humanos não são formados de um dia pra outro, então possivelmente profissionais de áreas que não da terapia intensiva terão que ser recrutados. Não podemos trabalhar com a hipótese de que não seremos afetados como Itália, Espanha, China ou Inglaterra. Será uma situação difícil. O poder público parece estar fazendo coisas que estão a seu alcance. O desenrolar disso, os dias vão nos dizer. Mas temos que estar preparados para uma situação muito séria — pontua Nagel.
Outro desafio é que a maior parte dos leitos de UTI no Rio Grande do Sul estão concentrados na Região Metropolitana, alerta Paulo Azeredo Filho, assessor técnico de saúde da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), que representa cidades do Estado. Isso exige dos municípios do Interior arcar com os custos de transporte que, em alguns casos, pode chegar a mais de R$ 75 mil para uma única pessoa.
— Estamos um pouco abaixo da expectativa (no número de leitos de UTI) do que teríamos que ter para suprir a demanda. Parece que estão visualizando como se tudo estivesse vazio, aguardando quem tiver coronavírus. Os leitos que temos no sistema já estão ocupados por pessoas com câncer ou que fizeram cirurgia. Esses 200 leitos são pouco para o Rio Grande do Sul. As medidas para que as pessoas fiquem em casa e a suspensão de cirurgias sem urgência foram feitas para tentar desafogar um pouco. Esperamos que dê certo — diz Azeredo Filho.
Independentemente da criação de novas vagas, nenhum país ou Estado consegue suportar uma leva de doentes graves buscando tratamento. Por isso, médicos suplicam que os brasileiros fiquem em casa nas próximas semanas para evitar que o sistema de saúde colapse.
— Não temos como estabelecer quantos leitos serão necessários se não sabermos qual será o pico de casos. Não há como dizer que 218 serão suficientes. Talvez sejam, mas talvez um número muito maior não seja. Por isso, é importante retardar a progressão do coronavírus. O Rio Grande do Sul está em situação talvez um pouco melhor do que outros Estados, mas há uma série de variáveis em jogo — pontua Eduardo Neubarth Trindade, presidente do Cremers.
Na Itália, a superlotação obriga médicos a lidarem com uma distópica escolha de Sofia: destinar os respiradores mecânicos disponíveis aos mais jovens em vez dos mais velhos. Agora, mesmo os mais jovens estão chegando às UTIs, porque não conseguem receber o tratamento na hora certa em leitos clínicos.
— Se a demanda continuar como está agora, a gente dá conta do recado. Os leitos de UTI estão sendo ampliados. Mas, se acontecer um cenário de Itália ou Espanha, nossos mortos e feridos serão maiores. Em momentos de guerra, não faz diferença a quantidade de leitos, porque o sistema vai saturar, as pessoas não terão para onde ir e morrerão em casa. É esse o cenário que a gente não quer e por isso as pessoas precisam ficar em casa agora — pede Eduardo Sprinz, chefe da Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).
Perde leitos clínicos, mas ganha de UTI
O estudo do Cremers mostra que o Rio Grande do Sul perdeu 1,3 mil vagas em leitos clínicos, mas ganhou 128 leitos de UTI para adultos nos últimos cinco anos, que passaram de 1.502 para 1.630. No total de leitos de UTI (incluindo também vagas para recém-nascidos, crianças, pacientes pós-cirurgia no coração e vítimas de queimaduras graves), o número cresceu de 3 mil para os atuais 3,2 mil. Em um cenário de alta demanda, o governo pode remanejar as vagas desses outros leitos de UTI.
— Até UTIs de queimados e para pós-operatório de cirurgias cardíacas podem ser transformados em UTI de adultos. Os únicos casos que não podem ser transformados são UTIs neonatais. Eventualmente, até UTIs pediátricas podem ser usadas — diz Eduardo Neubarth Trindade, presidente do Cremers.