Noticiada repetidamente desde o anúncio da morte de Gugu Liberato, a autorização para a doação de seus órgãos, manifestada ainda em vida pelo apresentador, tem intrigado por conta de um número: 50 receptores poderiam ser beneficiados, nos Estados Unidos (local do óbito), graças à decisão da família de cumprir a vontade de Gugu.
Além dos órgãos sólidos – coração, pulmões, fígado e rins, entre outros –, mais conhecidos do público em geral a partir de campanhas e reportagens na imprensa, também podem ser transplantados tecidos, como pele, válvulas cardíacas, ossos e cartilagens, elevando em dezenas o total de pacientes que ganhariam uma nova chance. A quantidade que vem ganhando as manchetes, portanto, não é absurda.
Gugu estava em sua casa na Flórida, na quarta-feira passada (20), ao cair de uma altura de aproximadamente quatro metros quando o piso do forro do primeiro andar da mansão cedeu com seu peso. O apresentador teve morte encefálica em decorrência de uma fratura na têmpora, que causou um sangramento no cérebro. Seu estado era tão grave ao chegar a um hospital de Orlando que os médicos descartaram uma intervenção cirúrgica.
A confirmação da ausência de atividade cerebral permite dar início aos procedimentos para a retirada dos órgãos, se há consentimento dos parentes. A idade – quanto mais jovem, melhor – e o estado geral de saúde do paciente são avaliados para determinar quais órgãos poderão ser aproveitados. Aos 60 anos, Gugu Liberato era saudável e teve um trauma agudo de crânio, o que configura a melhor situação para doação. Com o rápido desfecho, os órgãos foram poupados de sofrimento, o que poderia ocorrer se o tempo de permanência na UTI, com a administração de medicamentos, se prolongasse. Outro fator determinante para o sucesso de um transplante é a logística: um paciente com morte encefálica em Manaus, no Amazonas, não ajudará um doente que está na fila de espera por um coração ou um pulmão em Porto Alegre (o tempo para a retirada e o implante desses órgãos é de até quatro horas).
Percebemos que, quando ocorre uma situação de doação ou transplante com pessoas de mídia ou artistas de novela, imediatamente há um aumento no número de doações.
PAULO CARVALHO
Coordenador da Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes do HCPA
O mais comum é o transplante dos chamados órgãos sólidos: rins, coração, fígado, pulmões, pâncreas e intestino. Rins, fígado e pulmões podem se destinar a mais de um receptor. Quando concordam com a doação, os familiares assinam uma autorização padrão para órgãos sólidos e córneas – é possível que a família negue, especificamente, a retirada das córneas. Em separado, apresenta-se um documento referente à retirada de pele e ossos, que dependem da existência de um banco para armazenamento e da disponibilidade de espaço.
— O aproveitamento de tecidos não precisa ser imediato, eles podem ser guardados para o futuro — afirma Paulo Carvalho, coordenador da Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
No Rio Grande do Sul, existe um único banco de ossos, mas suficiente para atender à demanda: é o Banco de Tecidos Musculoesqueléticos do Hospital São Vicente de Paulo, em Passo Fundo. Apesar de pouco conhecida, a doação de pele e ossos é comum no Brasil, conforme Valter Duro Garcia, nefrologista e coordenador de transplantes da Santa Casa. Uma pessoa que tem uma perda óssea significativa em um acidente pode se favorecer, por exemplo. Também são aproveitadas as válvulas cardíacas mitral, tricúspide, aórtica e pulmonar (se o coração inteiro não é transplantado), ilhotas de pâncreas (células de pâncreas, quando o órgão não é doado – procedimento não disponível no Brasil), cartilagens e tendões. A medula só pode ser retirada de doadores vivos.
— Cartilagens e ossos podem beneficiar várias pessoas. De um osso grande, um paciente pode precisar apenas de um pequeno pedaço para um enxerto — explica Garcia. — O grande número de possíveis receptores vem daí. O diferencial são os ossos e as cartilagens — acrescenta o nefrologista.
O doador é submetido a procedimentos cirúrgicos que não desfiguram o corpo, uma preocupação recorrente entre os familiares no momento em que são abordados pela equipe médica para permitir ou não a doação. Primeiro são retirados os órgãos sólidos, depois pele e ossos. Estruturas de plástico colocadas no lugar dos ossos maiores servem de sustentação no cadáver, não comprometendo a aparência. A pele costuma ser raspada em regiões como peito e coxas, que ficam cobertas pelas roupas. Em termos técnicos, o Brasil é capaz de efetuar os mesmos procedimentos de transplante conduzidos dos Estados Unidos, compara Garcia, com exceção de novos tipos de intervenções, como aquelas que transplantam pernas, braços, pênis e face.
Carvalho destaca a repercussão favorável que têm episódios de intensa comoção com famosos, como o protagonizado por Gugu Liberato, em relação à conscientização da população quanto à importância de conversar sobre doação de órgãos e manifestar explicitamente o desejo de se tornar um doador:
— Percebemos que, quando ocorre uma situação de doação ou transplante com pessoas de mídia ou artistas de novela, imediatamente há um aumento no número de doações.