Um dos mais elementares e essenciais processos adaptativos da vida é o ponto central do trabalho dos três cientistas — dois norte-americanos e um britânico — que conquistaram o Prêmio Nobel de Medicina de 2019, anunciado na manhã desta segunda-feira (7). William G. Kaelin Jr., da Universidade de Harvard (EUA), Peter J. Ratcliffe, da Universidade de Oxford (Reino Unido), e Gregg L. Semenza, da Johns Hopkins (EUA), avançaram no entendimento sobre a maneira como as células se adaptam à disponibilidade de oxigênio, o que vem permitindo que outros estudos possam ir além na busca de conhecimento para combater doenças como anemia e câncer.
Professora de Fisiologia Humana e pró-reitora de Pesquisa e Pós-Graduação na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Márcia Giovenardi, celebra o reconhecimento para sua área. A fisiologia é a ciência que estuda o funcionamento do organismo, não só do ponto de vista normal como também em situações disfuncionais, de enfermidade. Os pesquisadores laureados conseguiram observar como uma célula do corpo reage diante das diferentes concentrações de oxigênio que chegam até ela. Esses estudiosos, constata Márcia, trouxeram informações básicas que, em alguns anos, estarão nos livros e serão ensinadas em sala de aula. Foram décadas de pesquisa para "colocar peças que não existiam em um quebra-cabeças", compara a pró-reitora.
— Quando temos uma diferença de oferta de oxigênio, nosso sistema imunológico e outras funções fisiológicas respondem frente a essas variações. Muda o funcionamento do corpo porque muda a quantidade de oxigênio disponível. Foi exatamente isso que eles descobriram: como as células se adaptam frente a mudanças — esclarece Márcia.
— A utilização de oxigênio pela célula é um mecanismo adaptativo essencial para a vida. É possível intervir nesse mecanismo, ativando-o ou bloqueando-o, de acordo com o interesse — acrescenta.
O organismo de uma pessoa sofre alterações quando está em locais de baixa ou alta altitude. Pense em um time de futebol que viaja de Porto Alegre para La Paz, na Bolívia, por exemplo. Geralmente, o que a equipe técnica planeja é um deslocamento que permita aos atletas se adaptar aos muitos metros a mais, em relação ao nível do mar, antes da partida. Populações que vivem em altas altitudes têm um aporte menor de oxigênio, ou seja, o ambiente dispõe de menor quantidade de oxigênio. Por conta disso, elas passam por um ajuste fisiológico para conseguir utilizar a quantia disponível.
— Esta capacidade fisiológica de adaptação permitiu que pudéssemos povoar o planeta em diferentes altitudes — diz a professora da UFCSPA.
Avanço no tratamento de doenças
Márcia também destaca que a elucidação desses mecanismos moleculares é importante para entender e tratar melhor a anemia, o infarto e o câncer.
— Começa uma nova etapa. Pode-se criar novas alternativas terapêuticas, possibilitar que estudos avancem no tratamento de doenças.
Professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do Centro de Processamento Celular Avançado do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Lucia Silla, ao sublinhar que as conclusões de Kaelin Jr., Ratcliffe e Semenza são extremamente relevantes em pelo menos três setores (formação do embrião, origem do câncer e funcionamento celular), aponta também o valor dos passos à frente da ciência no ramo da oncologia.
— Estamos compreendendo cada vez mais que a célula cancerosa é um mutante capaz de desmontar o sistema regulador de oxigênio. Ela sobrevive em condições muito adversas e respira de uma forma que não precisa de oxigênio — relata Lucia.
Segundo a docente da UFRGS, a falta de oxigênio, chamada de hipóxia, alerta as defesas do corpo sobre a existência de um possível organismo maléfico. Ao mesmo tempo, essa falta de oxigênio pode também estimular o sistema imune.
— É essa ambiguidade que está em estudo neste momento na área da imunologia e da hipóxia — resume Lucia.