Enquanto novos profissionais selecionados se adaptam aos parâmetros do trabalho no programa Mais Médicos após a saída dos cubanos em novembro do ano passado, consultas, procedimentos e atendimentos domiciliares atrasam ou até mesmo deixam de ser realizados, principalmente nas zonas rurais dos municípios descobertos. Levantamento de GaúchaZH aponta que, das 289 cidades que perderam os cubanos, 92 seguem com vagas não preenchidas – o que corresponde a 32%. A defasagem é de 144 profissionais.
Uma das cidades gaúchas mais afetadas é São Gabriel, na Região Central. O município contava com 13 profissionais, que atendiam as ações estratégicas de saúde da família, focados em prevenção e acompanhamento constante nas comunidades. Apesar de o primeiro edital, realizado logo após a debandada dos estrangeiros, apontar que todas as vagas seriam ocupadas, apenas seis médicos brasileiros se apresentaram na cidade. Para diminuir o impacto, a prefeitura contratou cinco temporários, um custo mensal de R$ 50 mil, segundo o secretário municipal de Saúde, Ricardo Coirollo.
— São quatro meses pagando esse valor, que, somados, chegam a R$ 200 mil. Isso em um orçamento que destina, para médicos contratados e hospitais, R$ 350 mil por mês. É complicado, tivemos que abrir mão do caixa único da prefeitura — afirma.
Para atender a área rural – que compreende 95% dos 5 mil quilômetros quadrados do município –, a prefeitura conta, desde 2015, com uma unidade móvel equipada com consultórios médico e odontológico. A pleno, o micro-ônibus tem capacidade para dois enfermeiros, um odontólogo e dois médicos. Porém, devido à defasagem de atendentes, a realidade é outra: o veículo está parado desde o ano passado.
— É uma escolha que se faz. Precisei fechar a unidade móvel para não fazer o mesmo com mais um posto de saúde — lamenta Coirolo.
As equipes da secretaria dão a partida no veículo quase que diariamente para evitar transtornos, como a descarga das baterias. No espaço de dois ambientes, há uma cadeira odontológica coberta de poeira pela carência de pacientes, ao lado de uma caixa de suprimentos com palitos sublinguais espalhados pelo chão e bolsas de soro abandonadas. Materiais como luvas e receituários são encontrados nas gavetas, intocados. A escala de visitas às comunidades mais distantes variava entre duas a três viagens por semana.
Filas e gasto extra para quem vive no Interior
Na outra ponta da cadeia de atendimentos que deixam de ser prestados, estão exemplos como o de Maria de Fátima Silva Pierre, 61 anos. Antes paciente da unidade móvel, ela agora precisa deixar o assentamento Guajuvira logo cedo, às 7h30min. A distância de cerca de 30 quilômetros até o centro de São Gabriel leva uma hora e meia para ser percorrida de ônibus, devido ao acidentado trajeto de terra, ao custo de R$ 26 ida e volta.
— Há dois dias eu vim e não consegui atendimento. Cheguei perto do meio-dia e não tinha mais ficha. Fiquei até 15h30min e tive que ir embora porque a doutora não ia conseguir atender todo mundo – relatou a idosa, que ainda aguarda pela aprovação dos documentos no processo de aposentadoria.
É inviável atender tanta gente sozinha. Deveria ter no mínimo 20 minutos para uma consulta adequada. Preciso dar atenção, ter tempo para um raciocínio lógico e fazer o diagnóstico. Assim não dá para fazer o que o programa propõe, um atendimento aprofundado, conhecendo a família.
LÉLIA MARIA DEVINCENZI
Médica em São Gabriel
Maria de Fátima é paciente do posto de saúde Zona Oeste, na área urbana. Três cubanos realizavam ao menos 60 atendimentos por dia no local até novembro de 2018. Após a saída dos estrangeiros, apenas uma vaga foi preenchida, pela médica Lélia Maria Devincenzi, que no momento é a única profissional no posto, e divide as consultas em dois turnos.
— É inviável atender tanta gente sozinha. Deveria ter no mínimo 20 minutos para uma consulta adequada. Preciso dar atenção, ter tempo para um raciocínio lógico e fazer o diagnóstico. Assim não dá para fazer o que o programa propõe, um atendimento aprofundado, conhecendo a família — desabafou, ao relembrar que já estava aposentada, em Santa Catarina, quando decidiu se inscrever no programa pelo desejo da família de viver no Interior.
O volume de trabalho reclamado por Lélia é visível na recepção da unidade de saúde. Quando a reportagem esteve no local, em 21 de março, uma dúzia de pacientes disputava, desde o início do dia, as concorridas fichas da tarde.
— Cheguei antes das 8h para pegar uma ficha. Agora vou esperar mais três ou quatro horas para consultar de tarde. Vou almoçar só depois que sair daqui, lá pelas cinco da tarde — afirmou Diva Bóssi, 55 anos.
Dos nove postos de São Gabriel, sete tiveram redução de ao menos um profissional. Referência para 6,5 mil pessoas – mais de 10% da população do município – as duas únicas unidades da zona rural foram fechadas, nas localidades de Santo Antônio e Faxinal. Moradores vizinhos a um dos prédios sem atendimento mostram-se ansiosos com a perspectiva de chegada de novos profissionais.
— Faz muita falta, tem que vir logo. Graças a Deus eu estou bem de saúde, mas o pessoal que mora aqui tem que enfrentar essas estradas, que estão péssimas — contou Mileta Machado, 65 anos.
A Unidade Básica de Saúde (UBS) Adão Cunha está fechada desde a saída dos cubanos para atendimento clínico, restringindo o serviço a um dentista uma vez por semana.
Cerca de 60 quilômetros separam a comunidade do centro da cidade, por estrada de pedra e terra. A opção menos desgastante é pela rodovia que liga ao município de Santa Maria, quase que dobrando o trajeto.
— São quatro horas de ônibus, isso quando não estraga. É comum quebrar mola pela buraqueira, e é tudo ônibus antigo — afirmou Elpídio Ramos Langendorf, 61 anos.
Ele e a esposa vivem da agricultura familiar, das compotas de doces revendidas nas feiras e dos derivados de leite que produzem. As viagens à cidade impactam no orçamento de casa, com renda per capita inferior a R$ 350.
Em São Leopoldo, posto atende sem clínico geral
São Leopoldo, no Vale do Sinos, perdeu três dos 13 médicos que atendiam pelo programa federal. O impacto é mensurado pelos funcionários dos postos de saúde nas incontáveis reclamações dos moradores que utilizam as três unidades descobertas.
Na Unidade Básica de Saúde (UBS) Cohab Duque, que leva o mesmo nome do bairro, um cartaz anuncia que não há qualquer clínico atendendo: "Aguardando reposição". Nos corredores do degradado prédio, quase não há pacientes, reflexo da falta dos médicos. Após a saída de um cubano, uma profissional brasileira assumiu, mas desistiu logo em seguida.
— Fazemos o acolhimento e tentamos orientar. Mas consulta com clínico a gente pede para buscar outro posto — disse a enfermeira Loeci Farias, antes de complementar: — O mais difícil é ouvir as reclamações: "O que estão fazendo aí? Por que não fecham se não tem médico?". A gente tenta melhorar a situação deles. Em alguns casos, conseguimos resolver aqui, em outros, não tem o que fazer.
A unidade de Estratégia de Saúde da Família Cohab Feitoria perdeu um médico de referência, acumulando o atendimento aos dois únicos profissionais. Em frente ao posto, um banner anuncia que dois dos três dentistas estão de férias. Para o clínico geral, há 10 fichas disponíveis, ocupadas por quem madrugou na rua.
— Meu irmão tirou ficha às 5h15min. Veio a pé, caminhou quatro quadras e foi trabalhar. Eu trouxe o pai, que tem 85 anos, devagarinho — contou à reportagem Renata Ferreira, 42 anos, que estava no local ao lado do pai, Angelino Ferreira.
O idoso trata diabetes e pressão alta.
— A gente consegue tudo que precisa, mas é muito mais demorado. Com os cubanos era melhor, mais rápido — reforça Renata.
Os pacientes reclamam ter tido dificuldades em renovar as receitas prescritas pelos estrangeiros. A esposa do pedreiro Aldemir Liro Gomes, 59 anos, ficou uma semana sem medicação.
— A receita era válida, mas não conseguia pegar na farmácia municipal. "Receita de cubano não aceita", eles disseram. Só com receita nova. Ficamos mais de uma semana sem o remédio para diabetes, colesterol e pressão alta — relembra ele.
Na unidade Padre Orestes, no bairro Santos Dumont, as filas para conseguir fichas nas consultas das quartas e quintas-feiras iniciam-se na noite anterior, segundo a enfermeira Daniela Guerra, 51 anos. Ao lado dos dois filhos, de três e sete anos, a dona de casa Rosa de Fátima Novaes Correa confirma a longa espera.
— Cheguei meia-noite e não tinha mais nenhuma ficha. Antes a gente conseguia, agora está horrível. Na outra quinta, vou vir mais cedo — relatou, calculando que ficaria ainda cerca de 10 horas do lado de fora do posto, até a abertura dos portões.
Ivo de Quadros Bitencourt, 59 anos, foi surpreendido ao saber que só há agendamentos para abril.
— Preciso da receita para depressão e vou ficar sem, porque o meu já tá no fim. De que jeito vou esperar?
A unidade Padre Orestes realiza hoje cerca de 20 dos 40 atendimentos que eram oferecidos semanalmente à população. O secretário municipal da Saúde, Ricardo Charão, classifica a situação como "crítica" e diz que os problemas só serão resolvidos com a chegada de novos médicos.
— Sigo com unidades abertas, mas com defasagem na escala de consultas. Cada médico realiza 400 consultas no mês. Com três profissionais a menos por quatro meses, perdemos 4,8 mil consultas, o que gera reclamações, filas, demora — estima.
Com apenas metade dos 18 médicos que atendiam pelo Mais Médicos, Gravataí, na Região Metropolitana, também tem prejuízos. Segundo o secretário de Saúde, Jean Pierre Torman, o desfalque atinge todas os 43 postos da cidade.
— O prejuízo é tremendo no atendimento e na prestação de serviços. Não consigo recompor as equipes só com profissionais concursados. Revezamos, colocamos um médico um tempo em um lugar e depois em outro. Mas sempre fico descoberto em algum ponto — afirma.
Reposição e reforço após edital
Em situação diferente dos 92 municípios que perderam profissionais, duas cidades terão reforço nesta nova fase de acolhimento. Hulha Negra, na região da Campanha, e Santo Ângelo, nas Missões, devem receber um médico cada, além dos que atuavam até 2018.
Na Serra, o prefeito de Vacaria, Amadeu de Almeida Boeira, afirma sofrer “impacto quase zero” com a transição no programa. Apesar de constar na lista de municípios que receberão reforço nos próximos dias, ele relata que não ficou uma semana sequer sem atendimento.
— A maioria que assumiu é do norte do país. Médicos novos, com vontade de trabalhar. E estão muito contentes com a cidade — define.
Em Guaíba, na Região Metropolitana, cinco dos seis profissionais foram substituídos, mas um sexto já está em processo de contratação. A prefeitura celebra ainda que o novo edital incluiu uma vaga a mais do que era previsto.