JACKSON, Mississípi – "Venho da menor cidade do Mississípi, no centro do Cinturão Bíblico", diz Gerald Gibson, gerente do programa de extensão do Centro de Saúde Open Arms, a única clínica criada para atender homens negros gays no estado.
"Cresci sem conhecer ninguém como eu", acrescenta. "Na cultura de onde venho, você vai para o inferno por ser homossexual e a Aids é a fúria de Deus."
O presidente Donald Trump planeja acabar em 10 anos com a epidemia de HIV, vírus causador da Aids; mas, num lugar como este, não será nada fácil.
Especialistas em Aids concordam que, clinicamente, o plano anunciado em seu discurso sobre o Estado da União é consistente. Tem duas metas: primeiro, conseguir que cerca de 1,1 milhão de estadunidenses infectados com o vírus tomem o coquetel de três drogas que, se ingerido todo dia, suprime o vírus, mantendo o paciente saudável e reduzindo quase a zero a probabilidade de infectar outras pessoas.
A segunda meta é conseguir que todo cidadão no grupo de risco – cerca de 1 milhão de pessoas – entre na profilaxia pré-exposição (chamada PrEP), uma pílula que, se tomada diariamente, protege quase completamente contra a infecção.
Mas essas metas exigirão muito dinheiro – bem mais do que os 291 milhões de dólares que Trump solicitou em sua proposta de orçamento para 2020. Além disso, exigirão uma liderança política corajosa, não apenas da Casa Branca, mas de todo governo estadual e municipal do país.
Nos últimos 15 anos, a epidemia se instalou mais em grupos difíceis de testar e ainda mais difíceis de continuar tomando medicação diária: gays não assumidos, usuários de drogas injetáveis, moradores de rua, pobres rurais, doentes mentais e aqueles sem plano de saúde.
Mas o grupo de maior risco inclui negros gays e bissexuais e mulheres transexuais no extremo Sul – em situação análoga à de Gibson e de sua clientela. Mais da metade dos novos casos de infectados pelo HIV no país ocorrem no Sul, de acordo com os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), e com frequência em áreas rurais.
Dos recém-infectados, muitos são jovens homens negros. Em todo o país, negros gays e bissexuais enfrentam um risco de 50% de infecção ao longo da vida. Dizem os especialistas que não será possível interromper a epidemia, a menos que esses homens sejam localizados, instruídos sobre a doença, persuadidos a se protegerem e a seus parceiros sexuais, e que recebam ajuda para isso.
E isso não é assim tão fácil.
"Um sujeito me pediu ajuda no Instagram – ele é positivo", relata Gibson, referindo-se a um homem portador do vírus HIV.
"Eu disse: 'Venha à clínica. Se não tiver transporte, mando um carro buscá-lo.' E ele respondeu: 'Não é tão simples. Minha família acha que posso ser curado pela religião.'"
Gibson faz uma pausa e diz: "Ele não está tomando os remédios porque acreditam que vão espantar o vírus com orações."
De acordo com o CDC, mais de 80% das novas infecções são transmitidas por pessoas que não sabem que estão infectadas ou que não estão fazendo tratamento.
– É difícil até mesmo entre os ricos de San Francisco
San Francisco – cidade modelo no combate ao HIV nos Estados Unidos – fez um grande esforço para extinguir os últimos vestígios de sua epidemia. Talvez não tenha bastado.
Na década de 90, a cidade tinha mais de 2.000 novas infecções por ano; reduziu esse número para cerca de 200. "Mas estamos nos estabilizando", informa Jeff Sheehy, ex-supervisor da cidade, soropositivo e ativista contra a Aids. "Estamos num impasse. Todo gay branco no bairro Castro está fazendo a PrEP ou recebendo cuidados, e agora temos de encontrar os difíceis de encontrar."
Entre os indigentes gays, 12% estão infectados. Alguns imigrantes ilegais evitam as clínicas com medo de serem deportados. Muitas mulheres infectadas têm histórico de uso de drogas, espancamento e estupro, e estão traumatizadas demais para conseguirem se disciplinar a tomar remédios.
Se você tem esquizofrenia e está desabrigado e usa heroína pra dormir e speed pra acordar, o HIV é apenas um problema a mais.
JEFF SHEEHY
ativista e ex-supervisor de San Francisco
"A Aids é agora uma doença de pobres, e não se pode separá-la dos outros problemas dessas pessoas", disse Sheehy. "Se você tem esquizofrenia e está desabrigado e usa heroína pra dormir e speed pra acordar, o HIV é apenas um problema a mais."
Em resposta, San Francisco tem um grupo de "navegadores" que visitam acampamentos de sem-teto e batem em portas de hotéis residenciais para encontrar e pessoalmente conduzir clientes indecisos a consultórios médicos e farmácias.
A cidade emprega gerentes de casos; eles preenchem complicados formulários de seguro e a documentação do Medicaid para pagar os medicamentos e exames laboratoriais. Abriu uma clínica "consciente de traumas" exclusivamente para mulheres HIV positivas que sofreram abuso.
Para os não segurados, a cidade tem um plano de saúde próprio, financiado pelos contribuintes. Em novembro, aprovou um novo imposto a grandes empresas com o objetivo de arrecadar US$ 300 milhões para abrigar indigentes.
E quanto ao resto do país, onde a maioria dos municípios tem apenas uma fração dos recursos de que San Francisco dispõe?
Jackson está no extremo oposto do espectro do atendimento ao HIV, tanto financeiramente quanto culturalmente. E as autoridades do Mississípi sabem disso.
"As pessoas acham que já podemos fazer como em San Francisco, mas não chegamos nem perto disso", comenta o dr. Thomas Dobbs, chefe da secretaria de saúde do estado de Mississípi.
Ele informa que cerca de um terço dos gays negros em Jackson estão infectados. (Embora sua população seja de apenas 170.000, Jackson é a capital e a maior cidade do estado; tem alguns bares gays e três clínicas de HIV.)
Fora de Jackson, é raro encontrar médicos qualificados para tratar pacientes com HIV. Segundo Dobbs, quando ele atendia em Hattiesburg, no sudeste do estado, alguns pacientes viajavam quase quatro horas para uma consulta.
Os salários no Mississípi são tão baixos que é comum encontrar trabalhadores em tempo integral atendidos pelo Medicaid. Mas a legislação estadual rejeitou a expansão do Medicaid.
Em 2016, o orçamento do departamento de saúde foi reduzido em 35%; tem agora um terço a menos de empregados do que antes.
O estado recebe alguma ajuda federal para o tratamento do HIV, mas quase tudo é gasto apenas em medicamentos. Pouco sobra para os serviços que Dobbs ofereceria, segundo afirma, se tivesse mais dinheiro: novas clínicas, PrEP para os que necessitam e contratação de médicos, epidemiologistas, gerentes de casos e conselheiros.
Mas a barreira financeira é apenas um obstáculo; os problemas legais e culturais são ainda maiores.
– Perplexo com preservativos
O conhecimento básico sobre sexo é limitado. Pela lei estadual, a educação sexual é focada na abstinência; podem-se mencionar preservativos, mas não distribuí-los.
Gibbon foi escoltado para fora de um campus universitário por estar distribuindo preservativos e demonstrar seu uso com o auxílio de um modelo de plástico. "E isso foi para adultos!", reclama.
Para uma pesquisa, o dr. Leandro A. Mena – diretor da Open Arms – pediu a dezenas de gays de Jackson que colocassem um preservativo num pênis de plástico; 90% cometeram algum erro.
"Abriram a embalagem com os dentes, ou não checaram a data de validade, ou usaram um lubrificante que deteriora o látex", relata. "Muitos nunca haviam usado um preservativo."
Em Nova York, é comum ver anúncios da PrEP no metrô. Alguns deles mostram negros amorosamente abraçados.
"Isso nunca seria possível aqui", afirma Sandra Melvin, diretora de operações da Open Arms.
Dobbs concorda, admitindo que seu departamento divulga apoio à PrEP nos porta-copos de bares gays e anúncios de serviços públicos em sites gays de encontros, como o Grindr. "Mas não colocamos o logotipo do estado", acrescenta rapidamente, temendo uma retaliação do legislativo.
Há também barreiras psicológicas.
Assim como um diagnóstico de câncer, o de HIV é também um choque inevitável, e muitos homens desaparecem depois de um resultado positivo, abalados demais para começar um tratamento. Sem os navegadores, seria muito difícil encontrá-los novamente.
Além disso, se alguém no Mississípi, consciente de sua condição, transmite o vírus a outra pessoa, pode pegar dez anos de cadeia. "Portanto, as pessoas nem querem fazer o teste, pois, se souberem que são soropositivas, serão responsabilizadas", ressalta Gibson.
Algumas pessoas também não querem ser vistas com medicamentos para o HIV. "Em Jackson, muitos gays negros têm namoradas", disse Aaron Jones, um flebotomista da Open Arms. Esses homens evitam a clínica.
Jacqueline Wilson, recepcionista numa clínica, descobriu que estava infectada depois de pegar seu ex-marido na cama com um homem. "Muitas mulheres têm medo de tomar os remédios", explica. "Têm vergonha do que as pessoas vão pensar; têm receio do que o médico vai dizer."
E há muita desconfiança em relação ao sistema de saúde pública. "As pessoas ouviram falar do experimento de Tuskegee", diz Regi Stevenson, outra recepcionista, citando um escândalo infame em que autoridades federais de saúde permitiram que negros permanecessem infectados com sífilis durante décadas. "Meu avô só vai ao médico quando está quase morto."
Apesar dos obstáculos, 85% dos pacientes da Open Arms atingem supressão viral, garante Mena, pois tomam seus remédios tão fielmente que o vírus nem é encontrado em seu sangue.
Para alcançar a meta, a clínica tem de oferecer serviços extras: assistentes sociais para lembrar os clientes de tomar o remédio, transporte para quem não tem carro e um banco de alimentos que oferece pacotes semanais, já que muitos pacientes são tão pobres que às vezes ficam sem refeição e então não querem tomar remédios que podem causar azia.
A Open Arms também gostaria de ter uma farmácia no próprio local, diz Mena, mas ainda não obteve licença. Segundo ele, uma clínica deve, principalmente, exercer a atitude correta.
"O paciente não quer voltar a uma clínica onde a enfermeira o faz sentir-se culpado por transar com homens, ou fica dizendo 'ele' quando deve dizer 'ela', ou ameaça não lhe dar os remédios se ele não os toma religiosamente", diz ele. "Um indivíduo com Aids é uma pessoa."
A Luisiana, vizinha do Mississípi, vai mais longe: o paciente cujo exame de sangue prova que está tomando o remédio diariamente é remunerado. "Para certas pessoas, isso é controverso; mas funciona", diz Alexander Billioux, secretário de saúde da Luisiana. "E não estamos oferecendo férias de luxo a ninguém. São cerca de US$ 25 por mês."
Independentemente das táticas empregadas por um estado, "a medicação se tornou a parte simples de resolver", comenta Mena. "O que está faltando é vontade política."
Por Donald G. McNeil Jr