Para os estudantes de Medicina, o paciente era um enigma. Segundo seu histórico, tinha uma dor residual de uma lesão na perna sofrida enquanto trabalhava no trilho de um trem. Agora, ele queria um opioide mais forte do que o que o médico tinha receitado, chamado Percocet. Então, por que seu teste de urina havia dado positivo para duas outras substâncias — cocaína e hidromorfina, um opioide poderoso que os médicos não haviam receitado?
Coube a Clark Yin, de 29 anos, descobrir o que realmente estava acontecendo com Chris McQ, de 58 anos – enquanto outros sete estudantes de Medicina do terceiro ano e dois instrutores assistiam.
— Como é que vamos ter uma conversa sobre os resultados positivos do exame toxicológico do paciente? — perguntou Lidya H. Wlasiuk, que ensina Conscientização e Intervenções sobre o Vício na Faculdade de Medicina da Universidade de Boston (EUA).
Yin levantou as mãos.
— Não tenho a menor ideia — admitiu.
Chris McQ é um estudo de caso fictício criado por Wlasiuk, interpretado para os alunos por Ric Mauté, tecladista que também trabalha como paciente-padrão — treinado para representar um paciente real, para ajudar os alunos a praticar diagnóstico e comunicação. A tarefa hoje era lidar com a delicada arte e ciência de administrar a dor crônica de um paciente que pode estar se transformando em um transtorno por abuso de substâncias.
Como um médico pode conquistar a confiança de um paciente que teme ser julgado? Como determinar se a demanda do paciente por opioides é uma resposta à dependência ou à dor?
Abordar esses dilemas pode parecer fundamental no treinamento médico – esses pacientes aparecem em praticamente todos os campos, da medicina interna à ortopedia à cardiologia. A necessidade de intervenção na linha de frente é assustadora: os provedores de cuidados primários como Wlasiuk, que pratica medicina de família em uma clínica comunitária em Boston, encontram esses pacientes com frequência, mas em geral não têm conhecimento para prevenir, diagnosticar e tratar o vício.
De acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças, a dependência – seja de tabaco, álcool ou outras drogas – é uma doença que contribui para 632 mil mortes nos Estados Unidos anualmente.
No entanto, um treino abrangente sobre como lidar com o vício é raro na educação dos médicos dos EUA. Um relatório do Centro Nacional de Dependência e Abuso de Substâncias na Universidade Colúmbia chamou a atenção para "o fracasso da profissão médica em todos os níveis – escola de Medicina, residência, treinamento, educação continuada e prática" para lidar adequadamente com o problema da dependência.
O doutor Timothy Brennan, diretor de um programa de bolsas em medicina de dependência no Mount Sinai, afirma que combater a crise apenas com a força de trabalho desses profissionais é "como tentar lutar na Segunda Guerra Mundial somente com a guarda costeira".
Agora, um esforço de uma década de médicos, estudantes e pacientes para legitimar a medicina do vício está resultando em sinais de mudança em todo o país. Um punhado de alunos começou a se especializar nesse campo novo, que se concentra em prevenção e tratamento do vício e nos efeitos das substâncias que causam dependência em outros problemas médicos. Em junho, a Câmara dos Deputados autorizou uma lei para reembolsar os custos de educação para profissionais de saúde que trabalham em regiões particularmente afetadas pelo vício.
Existem apenas 52 programas de bolsas para medicina do vício (a psiquiatria do vício é uma disciplina diferente), um número mínimo se comparado com outras subespecialidades. Em agosto, 12 deles finalmente receberam o status de certificação de padrão ouro do Conselho de Credenciamento de Educação Médica de Pós-Graduação (por outro lado, há pelo menos 235 programas credenciados de medicina do esporte).
Embora a maioria das escolas de Medicina ofereça informações sobre opioides, apenas cerca de 15 dos 180 programas nos EUA ensinam sobre dependência, incluindo de álcool, tabaco e outras drogas, segundo o doutor Kevin Kunz, vice-presidente executivo da Fundação da Medicina do Vício, que pressiona pela profissionalização da subespecialidade. E, segundo ele, o conteúdo nas escolas varia de uma palestra de farmacologia a várias semanas durante a rotação clínica do terceiro ano, geralmente em psiquiatria ou medicina de família.
Os programas raramente são mais profundos. A Universidade de Boston, no entanto, coloca o treinamento sobre dependência em quatro anos da faculdade.
A aula de 75 minutos para ensinar aos alunos da universidade as nuances de avaliar a dor de um paciente não é muito comum. O que também a distingue é a presença de um especialista em medicina do vício, o doutor Bradley M. Buchheit, do Centro Médico de Boston.
— O que não aparece neste exame toxicológico? — perguntou Buchheit aos alunos.
Silêncio inquieto.
— O que lhe prescrevemos, Percocet — disse Buchheit. — Então, temos que descobrir aonde esse Percocet está indo.
E, de repente, o labirinto médico em torno do McQ se tornou ainda mais complexo.
Como perguntar sobre o uso de cocaína
Quando você é um estudante de medicina de 20 e poucos anos, com os punhos fechados nervosamente nos bolsos do jaleco branco, aprender a fazer com que o rude e grisalho Chris McQ fale sobre verdades desconfortáveis não é algo que se consiga no livro didático. McQ estava rabugento e na defensiva. Enquanto os alunos recorriam à mesma réplica animada — "Incrível!" —, ele tentava não ceder. O homem só queria remédios para a dor.
Em cada sessão com grupos pequenos, um aluno tinha 15 minutos para avaliar McQ e fazer um plano. McQ já tinha tido problemas com cocaína. Sua namorada tomava hidromorfina, conhecida como Dilaudid, para dor nas costas. Qual o risco que ele corria de abusar de opioides?
— Pergunte primeiro sobre a dor que ele sente — afirmou Wlasiuk aos alunos. — A linguagem importa. Evite dizer, "Descobri isso". Em vez disso, diga, "Isso estava em seu teste de urina". Você quer que a conversa continue, não quer encerrá-la.
O transtorno de uso de substâncias proibidas é uma doença crônica, que tem recidivas. Assim como o diabetes. Os diabéticos não seguem a dieta 100% do tempo. Se eles cometerem um deslize, vamos descobrir o que aconteceu de errado e perguntar: "Existe mais alguma coisa que possamos fazer?".
BRADLEY M. BUCHHEIT
Especialista em Medicina do Vício
Os alunos aprenderam sobre "entrevista motivacional", uma técnica que encoraja os pacientes a falar sobre suas metas de saúde. À medida que a medicina se afasta da abordagem paternalista de que o médico sabe de tudo, os alunos estão aprendendo a envolver o paciente em uma tomada de decisão conjunta, de equipe.
Antes de McQ entrar na sala de aula, os alunos discutiram: Ele estava vendendo o Percocet para comprar cocaína? Estava roubando o Dilaudid da namorada?
Buchheit, no entanto, advertiu:
— O transtorno de uso de substâncias proibidas é uma doença crônica, que tem recidivas. Assim como o diabetes. Os diabéticos não seguem a dieta 100% do tempo. Se eles cometerem um deslize, vamos descobrir o que aconteceu de errado e perguntar: "Existe mais alguma coisa que possamos fazer?".
Apesar da urgência da educação de medicina do vício, há barreiras consideráveis para esse ensino. As horas de treinamento já são cumpridas em condições consideradas críticas. Conseguir tempo em um horário apertado pode significar que a atenção a outro assunto vai precisar ser reduzida.
Como a medicina do vício é um subtema novo, a maioria das escolas de Medicina não pode contar com a experiência dos alunos de pós-graduação que se aprofundaram nessa subespecialidade. Eles normalmente fazem consultas de casos relacionados à dependência em hospitais e clínicas, ensinam os alunos de Medicina e supervisionam os residentes em campos de cuidados primários, onde esses pacientes aparecem primeiro: clínicas de família, emergências e obstetrícia.
Por isso, o novo campo luta para se perpetuar.
Daniel Alford, professor e reitor associado da Universidade de Boston, é uma grande força por trás dessa adição no currículo.
— O grande desafio agora é como manter isso. Quem vai continuar atualizando? Quando os professores especializados forem embora, quem vai substituí-los? – pergunta.
Não há muito incentivo para se especializar em medicina do vício. Segundo um estudo de 2017, as disparidades dos seguros são impressionantes. As empresas de seguro encaram o tratamento da dependência como um reflexo tardio da terapia de saúde mental, que, por sua vez, está atrás do reembolso por cuidados de saúde físicos.
As razões para resistir à existência dessa carreira também são culturais. O estigma ligado a pacientes sobra para os médicos que os tratam. Os pacientes em geral são descritos como manipuladores e incuráveis; cuidar deles é visto como um esforço ingrato.
— Eu realmente gosto de trabalhar com esses pacientes — disse Buchheit aos estudantes. – Eles muitas vezes foram ignorados pelo sistema médico formal. Não confiam em nós. Então, para eles, entrar em uma sala e ouvir um médico dizer: "É ótimo ver você, obrigado por ter vindo", é muito poderoso. E você será capaz de ver como eles melhoram com o tratamento. Pode ser um trabalho muito gratificante.
Os estudantes tentaram abordagens com McQ.
— Você ligou para o consultório querendo uma reposição da receita do Percocet — disse um deles. — Mas é importante que venha aqui. Estou feliz que tenha vindo e que possamos manter um relacionamento.
McQ disse para um dos alunos que sua dor havia piorado —, que ele acabou com os comprimidos da receita, tentou conseguir mais e tomou alguns dos Dilaudid de sua namorada. McQ sugeriu que o médico lhe receitasse Dilaudid.
— Tempo — disse Yin, o aluno, voltando-se para a sala de aula.
— Qual é a sua dificuldade? — Wlasiuk perguntou a ele.
Yin respondeu que não queria recompensar o comportamento do paciente com uma receita de medicação mais forte, mas também não queria afastá-lo.
— Eu confio na história do paciente sobre a dor, mas não quero ser ingênuo — explicou.
Outro estudante perguntou:
— Aumentando a dose, você está protegendo o paciente ao impedir que ele consiga drogas nas ruas?.
Wlasiuk disse que, embora o treinamento médico geralmente exija que os estudantes apresentem respostas absolutas, tratar esses pacientes com frequência significa lidar de maneira confortável com a ambiguidade.
Os estudantes debateram soluções com ela e com Buchheit. Alguns se ofereceram para aumentar a dose de Percocet se o paciente concordasse em fazer visitas ao consultório; outros o incentivaram a tentar fisioterapia e acupuntura. Alguns se lembraram de alertar McQ sobre os opiáceos. ("Percocet é um opioide?", perguntou McQ. "Eu não sou uma dessas pessoas!")
Usando um tom imparcial, Chioma Anyikwa, de 25 anos, relembrou a história de McQ e sua dor, que antes ele havia listado como quatro em uma escala que chega até 10.
— Mais de sete — respondeu ele.
— Puxa, isso é muito alto – ela disse. — Você fez mais alguma coisa para tratar esse problema?
Hesitante, ele contou sobre o fato de que compartilhava o Dilaudid da namorada.
— Em seu exame de urina, também vimos um pouco de cocaína — continuou ela. — Você sabe algo sobre isso? Eu gostaria que fosse sincero comigo.
McQ estava desconfortável.
— Você não vai me criar problemas se eu contar?
Ela balançou a cabeça.
— Não, apenas queremos ajudá-lo a se organizar e resolver a questão — afirmou ela.
Ele admitiu que um amigo esteve na cidade e que eles haviam usado cocaína para lembrar os velhos tempos. Pouco depois, Anyikwa se preparou para o feedback do grupo.
— Eu falei demais? – perguntou ela.
Da sala de aula para a clínica
Dois dias depois, Anyikwa examinou pacientes reais. Sob a supervisão de Wlasiuk, ela passou um dia no Centro Comunitário de Saúde do Sul de Boston.
Sua primeira paciente, Brooke Anglin, de 28 anos, passou por momentos difíceis. Durante um relacionamento turbulento, quando sofreu de depressão e ansiedade severa, procurava tranquilidade nos opioides. Depois que seu segundo filho nasceu, Anglin perdeu o emprego como decoradora de bolos em um supermercado e a guarda dos dois filhos. Sob os cuidados de Wlasiuk, ela gradualmente se afastou dos opioides.
Enquanto Wlasiuk observava a cena, Anyikwa começou a perguntar com cuidado para a paciente: "Como estão indo as coisas?".
Não muito bem, afirmou Anglin. No começo daquela semana, ela havia sido despejada.
— Isso é terrível — respondeu Anyikwa. — Como você está lidando com isso?
Anglin disse que havia tido mais um ataque de ansiedade.
Foi o suficiente para Wlasiuk entrar na conversa.
— Seu coração está acelerado? Você está entrando em pânico?
Anyikwa observou Wlasiuk de perto.
— Você sentiu que poderia querer algo de seus amigos para resolver isso? — pressionou gentilmente Wlasiuk. — Por que não foi atrás?
Anglin sussurrou:
— Quero meus filhos de volta.
Wlasiuk segurou as mãos de Anglin.
— Estou impressionada com a sua força. Quero tratar sua ansiedade até que as coisas se acalmem. O que você acha? – disse a médica.
Elas concordaram com uma medicação contra a ansiedade. Wlasiuk também ensinou alguns exercícios de respiração à paciente.
Depois que Anglin saiu, Wlasiuk observou:
— Os cuidados primários são o lugar certo para tratar o abuso de substâncias. Temos o privilégio de conhecer bem nossos pacientes. Como você pode tratar o vício no vácuo?.
A paciente seguinte foi Sharon, de 61 anos, que trouxe com ela um neto pequeno. Sharon e sua filha, a mãe da criança, tomam Suboxone, um remédio que alivia o desejo por opiáceos. Wlasiuk entrou, e Anyikwa começou a falar.
— Sharon está limpa há anos — afirmou Anyikwa.
Prestando atenção na linguagem e no estigma, Wlasiuk a interrompeu: "Limpo" é uma palavra a ser evitada pelas pessoas desse campo porque pode significar que aqueles que ainda estão no vício são, por contraste, "sujos".
Educar os novos profissionais requer uma desconstrução meticulosa de pensamentos-reflexo antigos e uma construção cuidadosa de novas abordagens.
— Você quer dizer que ela está em recuperação — Wlasiuk advertiu discretamente Anyikwa.
— Certo. Em recuperação — respondeu a estudante envergonhada.
Por Jan Hoffman