— Eles botavam um esparadrapo na boca da gente com uma bucha de pano e batiam em toda a volta do esparadrapo com a bucha de pano dentro da boca.
O relato de Denise Tavares, 34 anos, abre, de forma dramática, um documentário produzido pelo Ministério Público Estadual (MP-RS) sobre maus-tratos a idosos e doentes mentais em casas geriátricas de Cachoeira do Sul, na Região Central. Em 27 minutos, o vídeo Projeto Cuidar — Histórias Reconstruídas, lançado nesta terça-feira (17), dá voz, nome e sobrenome às vítimas.
— Às vezes, nem comida ela (a administradora) dava pra nós. Ela chamava a gente de desgraçada, infeliz — conta outra vítima, Elisandra Fagundes Flores, 36 anos, com diagnóstico de esquizofrenia.
— Vocês nunca vão sair daqui — dizia a proprietária do abrigo.
A investigação partiu da promotora de Justiça Maristela Schneider. Ao ser transferida para o município, em 2015, ela acabara de ler o livro Holocausto Brasileiro, da jornalista Daniela Arbex, que retrata os maus-tratos no Hospital Colônia de Barbacena. Na instituição mineira, durante décadas, milhares de pacientes foram internados à força, sem diagnóstico de doença mental, em um enorme hospício. Eram epilépticos, alcoólatras, homossexuais, prostitutas, meninas grávidas por patrões, mulheres confinadas pelos maridos, moças que haviam perdido a virgindade antes do casamento. Foram torturados, violentados e mortos. Chocada com a leitura da obra e conhecedora de algumas histórias semelhantes em Cachoeira do Sul, Maristela resolveu agir.
— Eu sabia que teria um grande problema para resolver em relação às casas geriátricas e aquele livro me deixou muito impactada — conta.
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Uma força-tarefa liderada pelo MP uniu prefeitura e a 8º Coordenadora Regional de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde. Inspeções em 25 abrigos do município resultaram na catalogação de 768 pessoas. As casas deveriam ser geriátricas, mas foram encontrados muitos internos com menos de 60 anos. Do total, 265 tinham problemas mentais ou com alcoolismo e drogadição. O trabalho ainda identificou a existência de uma rede informal entre hospitais de outros municípios e as casas geriátricas de Cachoeira do Sul. Quando pacientes recebiam alta e não tinham familiares por perto, admnistradores contatavam os abrigos.
— Cachoeira do Sul virou um depósito de gente. Mais de 55 municípios enviavam pessoas pra cá — explica a promotora.
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As investigações concluíram que a maioria do vestuário utilizado pelos residentes era de uso coletivo, inclusive roupas íntimas. Em uma das casas, foram encontradas oito escovas de dente sem identificação na sala onde eram feitos atendimentos de enfermagem. Não havia pasta de dente, xampu e sabonetes. Uma das inspeções feitas pela equipe descobriu que uma baia para cavalos havia sido adaptada para receber idosos. Exames médicos confirmaram ferimentos em decorrência de maus-tratos, além de pacientes com vermes, piolhos, tuberculose e doenças sexualmente transmissíveis.
Sete casas foram fechadas pelo MP-RS no município, e três foram construídas pela prefeitura. Em uma delas, moram Tereza Machado da Luz, 58 anos, com o diagnóstico de esquizofrenia, e a irmã, Sandra Helena da Silva Borba, 46, com retardo mental moderado. As duas foram separadas na infância. Na antiga instituição, Sandra, que não tinha como pagar pela internação, foi, por muitos anos, obrigada a trabalhar. Agora, com a ajuda da força-tarefa, ela se preparar pra morar sozinha.
— Eu vou conseguir. Eu sei lidar comigo, mas não sei lidar com a minha cabeça. Então, tenho que procurar ajuda — diz Sandra, no documentário.
Hoje, são 23 casas em funcionamento no município. Atualmente, 510 pessoas estão internadas — 134 com menos de 60 anos.
— Cachoeira foi exemplo paradigmático, onde esse problema já existia. Muitos colegas do MP buscaram enfrentá-lo com alguma dose de êxito, mas a realidade acabava atropelando essa atuação na forma tradicional e o problema se agravava. Foi um trabalho efetivo não só para Cachoeira, mas para todo o Estado, uma vez que lá havia pessoas de todo o Estado. Era o maior problema nessa área que encontrávamos no Rio Grande do Sul. Então, teve um impacto estadual — explica o procurador-geral de Justiça, Fabiano Dallazen.
A Lei da Reforma Psiquiátrica, de 1992, de autoria do então deputado Marcos Rolim, criou o devido processo legal para as internações compulsórias, determinando que todas devem ser comunicadas pelos médicos ao Ministério Público e à Defensoria Pública no prazo de 24 h. Isso possibilita que o MP e a Defensoria possam agir em caso de internações abusivas. A lei gaúcha proibiu a construção de novos hospitais psiquiátricos, públicos e privados e determinou que fossem criados leitos psiquiátricos em hospitais gerais, além de facultar a transformação dos hospitais psiquiátricos em hospitais gerais Pioneira no país, ela acabou inspirando a criação da Lei Nacional da Reforma Psiquiátrica, em 2001.
Como assistir ao documentário Projeto Cuidar — Histórias Reconstruídas, produzido pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul: no YouTube (bit.ly/2H7Jw7y)