Parte importante da atmosfera cultural, recreativa e boêmia de Porto Alegre, a Cidade Baixa começa a mostrar sinais de recuperação com a retomada de estabelecimentos comerciais, quatro meses após a enchente que abalou o Estado.
Com 4.025 empresas ativas na região, segundo a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Turismo, apenas sete encerraram as atividades após a tragédia climática de maio.
Para a Associação dos Comerciantes da Cidade Baixa (ACCB), esse número reflete a persistência dos empreendedores, que trabalham para trazer de volta o movimento às ruas e aos bares e restaurantes que fazem parte do DNA da região.
— O bairro tem empreendimentos tradicionais, amados pela comunidade. Claro que tivemos perdas, mas foram poucas as empresas que resolveram deixar o bairro. Os comércios estão voltando, contando com o apoio do público, que sempre valorizou a região — avalia a representante da associação, Maria Isabel Nehme.
Casa tradicional reescreve história após desastre
Entre a Travessa dos Venezianos e a Rua Joaquim Nabuco, um sobrado tombado como patrimônio histórico abriga o Venezianos Pub Café. Com mais de duas décadas de história, o local viu receitas e memórias de festas icônicas ficarem submersas por quase 20 dias. A perda de equipamentos, insumos e mobiliário foi significativa e ainda é contabilizada.
Para conseguir retomar o funcionamento, foi necessário se reinventar, conta Alessandra Mendonça, 47 anos, uma das donas do pub. Ainda se recuperando de ter ficado 1m20cm abaixo d'água, o Venezianos promoveu, no final de maio, uma festa no Bar Ocidente, no bairro vizinho, para quitar algumas das despesas mensais.
— O Ocidente nos ofereceu uma data, era uma quarta-feira, para que nós voltássemos a arrecadar e conseguíssemos pagar as despesas do negócio. Mais de mil pessoas nos procuraram, porque se compadeceram da nossa situação e queriam nos apoiar. Algumas compraram ingresso e nem foram. Foi muito lindo. A gente diz que foi o dia que a casinha invadiu o casarão do Bom Fim — conta.
Quando foi possível reabrir, a volta foi feita em meio a reparos na estrutura. Fato que não afastou a clientela, segundo Alessandra.
— O maior patrimônio que nós temos são as pessoas. São os nossos clientes. Eles nos abraçaram na pandemia e agora na inundação. Nós não pedimos ajuda para a limpeza da casa, mas mesmo assim muitas pessoas de galocha e baldes vieram nos ajudar. Logo que abrimos de novo, eles passaram a frequentar com força — compartilha a empresária.
Apesar do apoio, Alessandra observa que muitos clientes do pub são moradores de áreas também afetadas pela enchente. Por isso, mesmo frequentando o local, eles estão mais cautelosos com os gastos, o que resultou em uma queda de 30% a 35% no faturamento.
— Eles estão dispostos a gastar menos com o entretenimento, até porque muitos estão focados agora em reconstruir as próprias casas — afirma.
Persistência e planejamento movimentam empreendimentos
Natural de Nova Bréscia, no Vale do Taquari, o empreendedor Moacir Biasibetti, 50, acompanhou de perto a tragédia de setembro do ano passado, quando a região onde cresceu, viveu e ainda frequenta foi devastada pelo rio que dá nome à localidade.
Com propriedades afetadas no Interior, ele jamais imaginou que situação similar pudesse acontecer novamente. Mesmo assim, oito meses depois, Moacir assistiu a uma nova enxurrada cobrir de água lamacenta grande parte do RS. O desastre impactou sua região natal e os dois empreendimentos que mantém na Capital.
Os comércios ficam próximos à Estação de Bombeamento de Água Pluvial (Epab) 16 do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), que deveria conter o avanço da água, mas teve funcionamento interrompido em meio à enchente. Com isso, o Guaíba subiu pelas ruas da cidade, alagando o restaurante Via Imperatore e o Boteco do Joaquim.
No primeiro empreendimento, a inundação atingiu cerca de 40cm, enquanto no segundo a marca ficou por volta de 1m50cm.
— Maio foi um mês que não existiu. Foi um mês que a gente perdeu praticamente tudo. Tivemos prejuízos de cerca de R$ 400 mil por estabelecimento, mas a vontade de reabrir foi muita — diz.
Biasibetti destaca que, diante das circunstâncias, foi necessário planejar cuidadosamente a retomada. Isso o levou a desenvolver, em parceria com o Sebrae RS e outros empreendimentos, o projeto “Sempre Cidade Baixa”, que visa revitalizar e aquecer a região por meio de roteiros turísticos e campanhas de divulgação.
— Começamos a fazer a comunicação com os nossos clientes sobre a retomada dos estabelecimentos, avisando que já estava seguro de vir para essa área. Contratamos influencers e divulgamos para jornais — explica.
O empresário estima que, nos primeiros meses, cerca de 70% do movimento já havia sido retomado nos dois estabelecimentos. Agora, a situação está quase normalizada, apesar de os prédios ainda passarem por reformas.
— Não adianta se lamentar pelo que foi perdido. Temos que arregaçar as mangas e trabalhar para fazer o negócio continuar girando e torcer para que nada disso aconteça novamente — pondera.
Bar organiza evento de aniversário
Inspirado no nome de um pássaro, disco e música de Tom Jobim, o Boteco Matita Perê opera há pouco mais de uma década na Rua João Alfredo. Em maio, essa via se transformou em uma piscina de água marrom e foi palco de cenas de moradores saindo de casa em botes. O bar e restaurante ficou cerca de 20 dias alagado e reabriu após um mês.
— Ainda não voltamos 100%. A parte noturna podemos dizer que agora está normalizada, mas a questão do almoço ainda está em cerca de 70% do que tínhamos antes. Ainda há pessoas fora de casa e também tem empresas e instituições do entorno, que costumavam nos trazer clientes, que ainda não reabriram — conta Filipe Stella, 47, dono do negócio.
Os prejuízos, que incluem desde equipamentos até a parte acústica do estabelecimento, estão sendo calculados. Obras ainda acontecem no prédio, mas a esperança e a solidariedade impulsionam o negócio.
— Eu acho que existe um espírito de solidariedade, de querer fazer essa retomada acontecer. Acho que a população quer botar a vida na normalidade e se divertir também. Estamos observando isso nos nossos clientes — relata o proprietário do local, que é repleto de referências à brasilidade.
O 15º aniversário do bar, completado em maio, não pôde ser comemorado devido ao desastre climático. Agora, uma programação especial está sendo planejada pelo estabelecimento para marcar a data festiva, assim como o retorno da casa. A celebração está prevista para novembro e deve ser marcada por música popular brasileira, boa comida, cachaça e drinques.
"Viva Cidade Baixa"
Buscando reaquecer a região, considerada uma das mais animadas da cidade, o movimento Viva Cidade Baixa surgiu em 15 de maio, dias após o início da enchente. Com reuniões semanais desde então, o projeto conta com quase 150 integrantes, que representam cerca de 80 comércios e serviços locais. Os membros compartilham experiências e trocam diferentes apoios.
Por meio desse movimento, 15 mutirões de limpezas em comércios do bairro já foram realizados, além de um site onde é possível se disponibilizar para colaborar com a retomada do bairro.
Para o futuro, Diego Dresch, 44, dono do Bar Caos e idealizador do movimento, diz que uma feira de rua sem taxa de inscrição para os comerciantes da região está sendo organizada. O objetivo é gerar receita para aqueles que ainda precisam se recuperar financeiramente.