Quanto tempo um sonho demora para ser realizado? No caso da população da Restinga, bairro da zona sul de Porto Alegre, um desejo só virou palpável depois de quase meio século de paciência e luta. Neste mês, o Hospital da Restinga e Extremo-Sul (HRES) completa sua primeira década em funcionamento.
Uma quantia pequena dentro dos cerca de 45 anos que a comunidade aguardou pela obra. Surgida na década de 1970, a promessa de implantação do complexo de saúde era parte dos primeiros projetos de ocupação da Restinga. Um terreno reservado ao prédio sempre teve vez no ideário da comunidade e nos documentos oficiais.
Com o passar das décadas, o bairro teve um crescimento volumoso, tornando-se praticamente uma cidade à parte no sul da Capital. E ainda cercado por outras importantes comunidades na mesma região, como Lami, Lageado, Belém Novo, Ponta Grossa e Chapéu do Sol. No início dos anos 2000, já eram mais de 100 mil pessoas que precisavam se deslocar, em média, 30 quilômetros para chegar ao hospital mais próximo.
Morte de bebê motivou morador na busca por obra
— Um fato simbólico que me fez batalhar por este hospital foi o caso de uma mãe aqui da Restinga que perdeu o filho no parto por não conseguir chegar até o atendimento adequado. Até por isso, sempre reforçamos a necessidade da obra contemplar também uma maternidade — recorda o líder comunitário Nelson da Silva, 82 anos.
O eletrotécnico aposentado hoje se locomove com auxílio de um andador. Na casa onde vive, no coração da Tinga, recebeu a reportagem de Zero Hora. Mesmo que a caminhada hoje seja mais cautelosa, a lucidez ainda é íntegra. Nelson foi presidente do Comitê Pró-Construção do Hospital Geral da Restinga e Extremo-Sul. E rememora com facilidade toda a luta da comunidade pela obra. Foi ele, aliás, quem esteve numa comitiva em Brasília, no Distrito Federal, buscando recursos para trazer a obra ao bairro de Porto Alegre.
— Lembro que nesta comitiva eram várias cidades pedindo hospitais, e a gente queria um hospital para um bairro — relembra ele, bem-humorado.
— Mas conseguimos explicar que esse bairro era maior do que muitas cidades, que seriam mais de 100 mil pessoas contempladas — completa Nelson.
Mobilização popular é marca da conquista
Mas o morador faz questão de lembrar que não travou sozinho a batalha. Esta é uma das grandes características do Hospital da Restinga: a luta popular pela sua construção. Com a promessa atravessando décadas sem qualquer previsão de sair do papel, os movimentos da comunidade e de órgãos como o Conselho Municipal de Saúde (CMS) foram tomando volume nos pedidos.
Inaugurar um hospital 100% operado via Sistema Único de Saúde (SUS) era algo que não ocorria na cidade há 50 anos. O caminho encontrado foi ceder o espaço para uma entidade privada construir e administrar o local em troca de isenções fiscais. Com isso, a Restinga conseguiu ter a qualificação da Associação Hospitalar Moinhos de Vento (AHMV), que fazia parte do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (Proadi-SUS).
Recebemos pacientes da Zona Sul e até de municípios vizinhos aqui da região. É uma realização dos moradores, mas também para mim, que comecei aqui como auxiliar de enfermagem há 10 anos e fui evoluindo profissionalmente.
Mas este é quase o ponto final no tema da construção. As conversas entre poder público e Moinhos de Vento tinham se iniciado em 2004 e se estenderam. Em 2007, o jornal Diário Gaúcho, do Grupo RBS, também entrou no tema, tomando a construção do hospital como uma de suas bandeiras. O jornal acompanhou todos os passos do trabalho. A terraplanagem do terreno começou só em 2010. E entre idas e vindas na construção, o canteiro foi concluído só em 2014.
— Só recebíamos não como resposta. Que não se tinha dinheiro, material, que não teria recursos humanos depois. Foi sempre a comunidade que se organizou para buscar as soluções — recorda outro ativo participante da mobilização pela obra, o servidor público aposentado Heverson Luís Vila da Cunha, 64 anos.
Hoje morando em Balneário Pinhal, no Litoral Norte, Heverson recorda com carinho do processo. Na época, era coordenador distrital do CMS na Restinga. E foi elo entre demandas da comunidade e autoridades públicas. Ele recorda que o comitê formado por lideranças da comunidade, conselheiros do CMS e políticos locais se dividia nas funções.
— Quem tinha mais abertura na comunidade, fazia essa busca pelos anseios dos moradores. Outros atuavam na frente da burocracia. E também tinha quem circulava entre os membros do poder público. E fomos até pedir ajuda do Ministério Público, que também teve participação em ações e nas audiências públicas realizadas até o processo tomar forma — recorda Heverson.
Coordenadora municipal do CMS entre 2008 e 2011, Maria Letícia de Oliveira Garcia, 59 anos, recorda a importância de uma ação civil pública movida na época com auxílio da Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos do Ministério Público, que resultou na decisão de que todos os processos envolvendo o SUS e verbas públicas deveriam passar pelo crivo do CMS, trazendo mais transparência e controle sobre o andamento das obras.
— O conselho se orgulha desse processo, da participação nesse caso do Hospital da Restinga, que é um dos mais exitosos quando se trata de participação popular — cita Maria.
Trabalho na comunidade ainda segue
Mesmo 10 anos depois da abertura, a comunidade ainda é parte ativa do hospital. Mensalmente, são realizadas reuniões com a presença de moradores, para que deixem seus comentários, sugestões e críticas à Associação Hospitalar Vila Nova (AHVN), que assumiu a gestão no segundo semestre de 2018, depois da saída do Moinhos de Vento da administração.
Quem costuma frequentar os encontros é Djanira Côrrea, 71 anos. A comerciária aposentada era coordenadora municipal do CMS na época da abertura da instituição, além de ser moradora da Restinga.
— Foi bem importante estar por ali na época e ter um morador do bairro no CMS. Meu envolvimento com as lutas populares vieram logo que mudei para a Restinga e, desde então, nunca mais deixei de lado. Temos o hospital, mas também temos o Instituto Federal (escola técnica), que foi outra conquista popular — recorda Djanira.
Hoje, ela mora no bairro Hípica, a poucos minutos da Restinga. Mesmo na comunidade vizinha, a liderança comunitária diz que o trabalho permanece lá:
— Minhas grandes amizades estão lá. Sempre falo que eu saí da Restinga, mas minhas lutas continuam lá.
Sempre foi um grande desejo da comunidade ter este hospital. Me orgulho de estar aqui desde a abertura e como moradora da Zona Sul, também fico feliz de ver a realização dos moradores da região.
REGINA LIMA
Médica coordenadora da emergência do HRES
Entre os pontos que Djanira dizem estar em discussão atualmente, estão pedidos para uma linha de ônibus que ligue o Centro Histórico diretamente ao hospital. Hoje, o ponto de ônibus mais próximo que leva ou traz alguém do Centro até o hospital fica cerca de 500m distante da instituição.
Melhorias no atendimento na rede básica também são uma demanda. Isso porque se os atendimentos demoram demais, a população acaba buscando os hospitais e sobrecarregando emergências com atendimentos que poderiam ser feitos nos postos de saúde.
Mas o grande ponto que segue como demanda é a instalação da maternidade do Hospital da Restinga. A instituição foi selecionada recentemente pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para receber a maternidade. O processo, entretanto, ainda é longo.
— Vamos acompanhar até o final, não podemos descansar ou descuidar — alerta Djanira.
Maternidade e novos equipamentos no horizonte
Uma das demandas que fez parte dos pedidos iniciais da construção do hospital está mais próxima de ser atendida. Trata-se da maternidade do Hospital da Restinga e Extremo-Sul. A seleção no PAC, anunciada recentemente, prevê um investimento de R$ 103 milhões, sendo R$ 54 milhões para a primeira etapa, que abrange a construção. O primeiro passo foi o parecer favorável do Ministério da Saúde. Mas a inscrição no PAC foi uma luta da própria administração do hospital, como recorda Amanda Dal Molin, diretora-geral do HRES.
— Foi importante estar nesse processo e garantir que a maternidade venha para esta região da cidade — comenta ela.
O processo ainda é bastante inicial e depende de muitas etapas burocráticas. Por isso, Amanda não traça prazos. Mas acredita que, sendo confirmada a seleção, seriam pelo menos cinco anos até a conclusão das obras.
Segundo a prefeitura de Porto Alegre, a maternidade prevê a criação de 91 leitos, passando a oferecer assistência às populações da Restinga, Extremo-Sul e Lomba do Pinheiro, que contam com cerca de 150 mil habitantes, sendo mais de 50% mulheres. O atendimento também deve contemplar outros municípios da Região Metropolitana, como Viamão, Alvorada e Cachoeirinha.
Conforme dados mais recentes do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), a maternidade na Restinga seria capaz de absorver mais de 7,5 mil partos por ano. Atualmente, segundo a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), as maternidades da Capital operam acima da capacidade de atendimento. A construção ainda deve contemplar um Ambulatório de Saúde da Mulher.
Outra demanda ligada à saúde feminina mais próxima de se realizar é a aquisição de um mamógrafo. O equipamento que o hospital possuía está fora de uso por problemas. Agora, a aquisição será possível através de uma emenda parlamentar destinada ao hospital.
— São demandas que ouvimos sempre nas reuniões que temos com a comunidade. A participação ativa deles segue importante mesmo depois desses 10 anos do hospital em funcionamento — pontua Amanda.
Inclusive, a associação Vila Nova prepara caminho para criar uma nova comissão composta também por moradores e acompanhar o andamento dos processos envolvendo a construção da futura maternidade.
A linha do tempo do sonho
- Anos 1970 — A obra é recordada como parte dos primeiros projetos de ocupação da Restinga. Durante décadas, o tema ficou restrito apenas a discussões.
- 2004 — Então prefeito de Porto Alegre, João Verle (PT), assina um contrato com a Associação Hospital Moinhos de Ventos estabelecendo metas para construção do hospital.
- 2006 — Primeiro data prevista para entrega. As obras, entretanto, sequer tinham começado. O comitê criado pelos moradores finca uma bandeira no terreno para lembrar a obra não-iniciada.
- 2007 — Em janeiro, o jornal Diário Gaúcho, do Grupo RBS, publica a primeira reportagem sobre o tema, assumindo a construção como uma bandeira do jornal.
- 2009 — A Licença de Instalação é assinada e sai a escritura do terreno.
- 2010 — Começa a terraplanagem do terreno.
- 2013 — Atrasos na obra e indefinição entre AHMV e o poder público para assinatura do contrato de funcionamento adiam a conclusão da obra para 2014.
- 2014 — O hospital começa a atender com serviços de pronto-atendimento. O funcionamento a pleno vem no ano seguinte.
- 2018 — O Moinhos de Vento deixa a administração. Uma nova licitação é feita e assume a Associação Hospitalar Vila Nova.
- 2023 — O ano termina com 89.216 atendimentos realizados na emergência do HRES. Aumento de 234,39% em relação a 2018, quando o Vila Nova assume.
- 2024 — O Hospital da Restinga e Extremo-Sul completa 10 anos de existência. A construção da maternidade, promessa da inauguração, ganha um novo capítulo, com perspectiva de ser construída em cinco anos.