— Eu moro ali na Ilha Mauá, Ilha da Pintada, há 47 anos, desde que eu nasci. Só que essa enchente... ela veio diferente. Veio rápido e com muita água, com muita força. O que mais me impressionou foi a correnteza. Em outras, não vinha com tanta força — conta Márcio Silva, 47, piloto do barco que levou a reportagem para acompanhar a medição da vazão do Guaíba, feita por um grupo de pesquisadores, na última sexta-feira (31).
A enchente do último mês derrubou o muro, a parede da casa de seu irmão e uma parede da residência do marinheiro, no bairro Arquipélago, em Porto Alegre.
— A gente, na Ilha da Pintada, está meio que acostumado com a água elevar, e a gente vai se preparando com ela vindo. Dessa vez, não adiantou ter a preparação — acrescenta.
Silva recebeu a equipe com simpatia e singeleza, pedindo para "não reparar na bagunça" do barco que tem sido seu lar improvisado nos últimos meses devido às inundações. Uma chupeta pendurada, uma estátua de Nossa Senhora carregando Jesus, flores de plástico e eletrodomésticos são alguns dos itens dispostos no compartimento onde o marinheiro conversou com a reportagem enquanto manobrava — com traquejo — o timão para navegar pela água profunda e amarronzada do Guaíba.
Desde setembro, Silva dividia os dias entre habitar o barco e sua casa na Ilha Mauá, que estava em reforma devido à enchente de 2023. Por esse motivo, as roupas da família já estavam na embarcação. Com a elevação do nível do Guaíba no mês passado, os familiares moveram as TVs e o que foi possível para dentro dos três barcos que possuem. Móveis e eletrodomésticos maiores, como sofá, geladeira, máquina de lavar e fogão, entretanto, ficaram para trás e, cobertos pela água, foram perdidos. Em frente à ilha, a equipe da embarcação apontou a direção onde fica a casa de Silva, que segue inundada e inacessível até o momento. Agora, o barco se tornou seu lar definitivo.
— O mais importante é a gente — ressalta o marinheiro.
Nos primeiros dias da tragédia, Silva, a esposa e dois filhos (de quatro e sete anos) permaneceram a bordo. Porém, com a forte vazão do Guaíba, — que chegou a 30 milhões de litros por segundo no auge da enchente, arrastando embarcações, marinas e objetos pela água —, o marinheiro achou perigoso deixar a família no barco e resolveu levá-los para a casa de um parente no Litoral. Silva e seu filho mais velho, de 25 anos, também marinheiro, ficaram na região das ilhas cuidando dos barcos. Sua filha de outro casamento, de 18 anos, está com a mãe em um abrigo na Capital.
Informação para a sociedade
Com o trabalho de praticagem (condução e manobra de embarcações) suspenso em função da enchente, Silva tem atuado como piloto para um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que tem ido a campo nas últimas semanas para medir a vazão, a velocidade e os sedimentos no Guaíba. O marinheiro conheceu a equipe enquanto os especialistas e técnicos instalavam um aparelho de medição perto de sua casa. Posteriormente, eles passaram a contratar seus serviços de navegação para levá-los pelo Guaíba a fim de medir os dados.
De lá para cá, o professor Elírio Toldo Jr. virou um "companheiro", define Silva. A tarefa também é proveitosa para o marinheiro, que fica ciente e repassa informações úteis para o trabalho de praticagem: quando a correnteza está elevada em excesso, por exemplo, o serviço é interrompido. O marinheiro encaminha, ainda, atualizações fornecidas pelo professor, com autorização, para outros moradores das ilhas e amigos.
Eu já comecei a pensar em melhorar onde eu moro. A Ilha da Pintada, para mim, é um luxo. (...) Eu não penso em sair da ilha. Para me tirar, só amarrado
MÁRCIO SILVA
Marinheiro
Silva fica satisfeito por estar ajudando os pesquisadores a conseguir realizar as medições em campo e, consequentemente, levar informações relevantes para a sociedade.
— Eu acho importante e fico até lisonjeado de poder estar contribuindo com alguma coisa. Não só com o pessoal que mora na Ilha da Pintada, mas com o Rio Grande do Sul. A primeira medição que a gente fez era um trabalho perigoso. Era meio ruim de ser feito naquele momento. Mas assim mesmo, eu dei um jeito e fui fazer o trabalho, porque eu achava que era importante para além, para mais adiante, para o que vai vir depois. Por isso, eu resolvi topar — declara.
Para quem pretende colocar o "pé na água" para obter dados hidrométricos e sedimentológicos — fundamentais para o conhecimento científico do Guaíba e da Lagoa dos Patos —, os serviços de logística de navegação são fundamentais, afirma o professor Elírio Toldo Jr.:
— Principalmente nestas condições extremas criadas pela enchente, com correnteza das águas em padrões do Rio Amazonas quanto às velocidades, é fundamental contar com pilotos experientes nestas condições adversas. O Márcio vem de uma família de marinheiros desde a época do Deprec (Departamento Estadual de Portos, Rios e Canais), que conhecem a movimentação das águas e do fundo do rio por experiência prática, não só por residirem nas ilhas do delta do Rio Jacuí, mas por ali navegarem diariamente.
Desejo de voltar
Apesar de ter tido sua residência novamente castigada pela elevação da água, Silva não pensa em mudar de endereço e pretende voltar para casa assim que possível.
— Eu já comecei a pensar em melhorar onde eu moro. A Ilha da Pintada, para mim, é um luxo. Tem problema de água, tem, mas qualquer outro lugar também tem outros problemas. Eu não penso em sair da ilha. Para me tirar, só amarrado — destaca.
Para o marinheiro, é preciso melhorar as estruturas — a herança do pai pode ter se tornado ultrapassada com o aumento da quantidade de chuva, pondera. O plano é erguer mais a casa.
— Eu acho que não tem o que fazer. Eu tenho barco, e esse barco é o meu trabalho. Não tem outro lugar para eu ir que eu não vou ter problema de enchente. Que eu possa levar meus barcos. Eu não vou vender meus barcos para ir morar em algum lugar... Isso aqui é a minha vida, não tem como — ressalta.