Aos olhos leigos que passam pelo edifício cinza e com a fachada semi-transparente de janelas sujas atravessadas por pilares verticais de concreto, sem sinal presença humana há anos e cheio de papéis amontoados pelo chão, o número 2244 da Avenida Borges de Medeiros, bairro Praia de Belas, parece estacionado no tempo. É preciso revisar as publicações especializadas e os pesquisadores da arquitetura modernista para entender que a antiga sede da Secretaria Municipal de Obras e Viação (Smov) de Porto Alegre é um símbolo do urbanismo da Capital.
Para o doutor em arquitetura e urbanismo, professor da pós-graduação da UFRGS e membro da diretoria da região sul-brasileira de Documentação e Conservação do Movimento Moderno (DOCOMOMO) há 8 anos, Sérgio Marques, sobram requisitos para incluir o prédio de 1970 no inventário municipal que impede que suas características sejam modificadas. Além dos traços que exaltam o concreto e da longevidade do conceito de “planta livre”, há uma relevância histórica para a presença envidraçada quase na esquina da Avenida Ipiranga, aponta Marques.
— A região sul do Brasil não produziu arquitetura tão exuberante quanto o Rio de Janeiro, com toda fluidez, sensualidade e malícia, nem a eloquência audaciosa dos paulistas. Porém, do ponto de vista urbanístico, Porto Alegre foi vanguarda desde o início do século 20. O bairro Praia de Belas como um todo é uma expressão da conquista urbana da cidade sobre o Guaíba. Foi local pensado para reunir edifícios públicos, com parques e espaços públicos por perto, um modelo de modernismo — argumenta o especialista, que também é filho do arquiteto Moacyr Moojen, projetista do edifício em 1966.
Moojen é responsável por outras obras modernistas que já foram tombadas como patrimônio municipal: o Auditório Araújo Vianna, no Parque Farroupilha, e o Edifício Fam, também no Praia de Belas, por exemplo. A atuação do arquiteto modernista e seus colegas de Porto Alegre é ressaltada em revistas e publicações especializadas, destaca o presidente do Conselho do Patrimônio Histórico Cultural (Compahc), braço complementar às análises de patrimônio cultural da SMC, Lucas Volpatto.
— Dentro daquele prédio foram tomadas as decisões mais importantes do urbanismo do período que construiu a cidade como vemos hoje. A preservação se justifica pelo uso e manutenção dele. Caso ele seja inventariado, o prédio vai poder ser reformado e virar residencial, centro cultural ou até mesmo comercial. Ninguém quer inviabilizar o uso e a criação de recurso, mas sim preservar a importância arquitetônica dele — opina Volpatto, que também participa do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do RS (CAU/RS), órgão que pediu a suspensão do leilão.
A posição de Volpatto sobre o tema é pessoal. Qualquer decisão do Compahc é tomada de forma colegiada. A entidade é um conselho multidisciplinar composto por 15 profissionais que atuam debatendo e construindo conclusões sobre o patrimônio histórico da cidade. Ao final do debate, o parecer é votado e entregue à prefeitura como um conselho técnico paralelo a Epahc, sem a obrigatoriedade legal de ser seguido.
O imóvel de sete pisos é o próximo da lista que a prefeitura quer vender. Neste domingo (26), porém, o Ministério Público Estadual pediu que o leilão marcado para a segunda fosse suspenso até que a Secretaria Municipal de Cultura explique a decisão de não protegê-lo como patrimônio histórico. Para o executivo municipal, é mais importante neste momento a construção de habitações sociais naquele local.
— Estamos cumprindo todos os regulamentos da lei e do edital. O imóvel está autorizado pela Câmara de Vereadores para venda e há uma lei municipal que determina que R$ 40 milhões do produto dessa venda seja destinada para a construção de 254 unidades habitacionais, que é uma carência na cidade. Estamos adotando todas as cautelas para não praticar nenhuma irregularidade — comenta o titular da Secretaria Municipal de Administração e Patrimônio, André Barbosa, pasta responsável pelo leilão.
O que faz do edifício um ícone arquitetônico
Para Marques, são quatro características arquitetônicas que fazem do prédio da Smov um ícone da cidade. A tese de doutorado dele sobre o movimento modernista em Porto Alegre, concluída em 2012, foi premiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) com uma bolsa para pós-doutorado. Ele e Lucas Volpatto coincidem na análise dos seguintes pontos:
- O edifício é um dos primeiros a usar o conceito de planta livre na cidade. Isso quer dizer que no miolo dele estão toda sustentação e circulação vertical, com elevadores e escadas, além dos pilares do lado de fora. O resto dos andares está livre para ser organizado como for a demanda do momento, pensando em um prédio público que pode ser usado de várias maneiras diferentes ao longo dos anos.
- A grande quantidade de concreto à mostra, característica de uma corrente chamada de “Brutalismo”, é outro ponto. Naquela época, o elemento expressivo que denotava força e qualidade do edifício era a quantidade de concreto a vista. Além disso, foi o primeiro imóvel da cidade que usou placas de fachada pré-fabricadas em concreto.
- Flerta um pouco com o classicismo, com base, corpo e cobertura comportados, menos mirabolantes. Isso confere uma certa sobriedade, em comparação a outros projetos modernistas como o Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF) e seus "tobogãs" gigantes, por exemplo. As janelas contínuas ao longo da fachada, seguindo a lógica de vidros inteiros sem as paredes internas, ainda precisariam de uma proteção do sol, o que tornaria ele mais eficiente.
- Ainda que alguns arquitetos apontem para um suposto isolamento do prédio da Smov em relação a outros edifícios históricos na região, há, ao lado, o edifício que recebe a subestação da CEEE, que também é modernista, além do próprio CAFF, ou da sede do Instituto de Previdência do Estado (Ipergs) e dos parques e praça ao longo do bairro, todos projetados no mesmo movimento modernista.