Neste domingo (26), Porto Alegre completa 251 anos desde a sua fundação. Com tantos anos de história, é natural que a Capital tenha servido também como cenário para a criação de diversas histórias literárias marcantes.
Abaixo, destacamos uma lista de 10 livros com enredos que se passam pelas ruas da cidade.
A Divina Pastora (1847), de Caldre Fião
Considerado um dos romances fundadores da literatura gaúcha, A Divina Pastora, de Caldre Fião, narra uma história passada durante a Revolução Farroupilha. O próprio livro, de 1847, foi escrito no calor da hora, e portanto a descrição que o autor faz da Porto Alegre de seu tempo, embora edulcorada, ao espírito rebarbativo da época, é a de uma testemunha.
Um trecho
"Os raios dourados do astro do dia principiavam a projetar-se sobre os cabeços das montanhas que encadeadas se ostentam soberbas de terem sobre si edificada a mais bela cidade do Sul do império diamantino, cujos pés vêm lavar o Rio Guaíba trazendo-lhes as incalculáveis riquezas que fornecem as floridas margens do longo e caudaloso Jacuí, do sinuoso Gravataí, do saudoso Rio dos Sinos, e do sempre recordado Caí. O bulício da cidade chamava a atenção do habitante do Caminho de Belas que ao levantar-se sentia os zéfiros embalsamados pelos florentes alecrins dourados e verdes manjericões, e mil flores cujo matiz agrada à vista e chama o pensamento do filósofo à contemplação de Deus. O habitante do Caminho Novo também é despertado e como o do Caminho de Belas vê o manto da noite fugir apressado ante os primeiro anúncios do dia, e o prateado espelho das águas do Guaíba refletir buliçoso o ouro e a púrpura de que se reveste o rei da natureza. Aquele porém que dorme debaixo do telhado das casas que formam o duplo angular terreno da Praça do Paraíso* veria, sem dúvida, se levantasse a essa hora, um ancião gordo, armado de grande chapéu do sol, seguido de sua mulher, uma linda filha tão pura como a rosa na alva serena, dois filhos que submissos seguem os passos do ancião, uma escrava gorda munida de um largo samburá, e bem depressa adivinharia ser Paulo e sua família."
Os Ratos (1935), de Dyonélio Machado
Quando Porto Alegre sofre seu primeiro fulminante surto de industrialização no século 20, Dyonélio Machado coloca o elemento central do capitalismo moderno como o gatilho que faz se movimentar a trama de Os Ratos: o dinheiro. Ele não está só no centro do drama de Naziazeno, desesperado para arranjar dinheiro para o leite, mas em toda a cidade, repleta de comércio miúdo, operários, malandros, viradores e obras.
Um trecho
"É a segunda vez que consulta o relógio da prefeitura esta manhã. Esse relógio, lá no alto, na torre, parece-lhe uma cara redonda e impassível...
Já pôs o pé na calçada do mercado. O Café do Duque fica na outra esquina. Toda essa calçada é uma sombra fresca e alegre, cheia de passos, de vozes. Quando defronta o portão central, abre-se-lhe, lá dentro, uma perspectiva de rua oriental, cheia de bazares, miragem remota de certas gravuras... ou de certas fitas... que viu. Não enxerga o Duque nos lugares habituais... E, entretanto, é a "hora dele". Vai ficar por ali, pelas portas, alguns minutos.
Ele não poderá tardar. Nunca deixa de ir a esse café. Só por doença."
Romance Antigo (1940), de Darcy Azambuja
Darcy Azambuja tornou-se conhecido como jurista e teórico do Direito — seus livros na área são reeditados até hoje, diferentemente de suas investidas na ficção. Romance antigo reimagina, com minuciosa pesquisa, a Porto Alegre de 1816, ainda uma aldeota do reino português, em que a chegada de notícias do grande mundo dependia de viajantes e pregões rua afora.
Um trecho
"Mandava o governador que a Câmara organizasse um bando, em que ele próprio se incorporaria, para anunciar à vila a morte da Rainha. Uma hora depois o extenso cortejo do bando saía do Palácio, na Praça da Matriz, entrada na Rua Pecados Mortais*, e descia para a Rua da Praia.
(...) Os sinos da Matriz, das Dores e dos Passos plangiam lugubremente no ar calmo da tarde de abril. Nas residências mais importantes, os postigos das janelas estavam cerrados; nas humildes, gente sem protocolo metia através das portas a cara curiosa para o bando. Não raro, alguns apontavam a figura imponente do governador e diziam, numa admiração desrespeitosa: Olha, até o Diabo Coxo vai de charola!
Nos pontos mais centrais o bando estacava, o andador da Igreja da Matriz fazia tatalar a matracar, o procurador da Câmara adiantava-se e lia, em um pergaminho de onde pendiam longas fitas negras, a notícia da morte de D.Maria I, rainha de Portugal, Brasil e Algarves, que Deus chamou à Sua Santa Glória — Orai por ela."
* Hoje, Rua Bento Martins
O Resto É Silêncio (1943), de Erico Verissimo
Erico Verissimo dedicou a primeira fase de sua carreira a um ciclo romanesco passado em Porto Alegre. Uma das cenas mais impactantes da obra de Erico nasceu de um suicídio testemunhado pelo autor e por um amigo em 1941, na Praça da Alfândega, como ele conta em O Resto É Silêncio — romance que começa justamente com a queda de uma "rapariga loira, alva e franzina" de um espigão no centro da Capital.
Um trecho
"Logo depois que o sol desapareceu, aquela praça ali no centro da cidade teve um minuto de esquisita beleza. As lâmpadas estavam ainda apagadas. Os anúncios de gás néon riscavam de coriscos coloridos as capotas dos automóveis parados junto da calçada. Quem olhasse para o lado do poente veria — silhuetas de casas, torreões, cúpulas, postes, cabos e armações de aço — uma escura massa arroxeada contra o gelo verde do horizonte.
Sons de buzinas distantes e de raras vozes humanas subiam amortecidos na atmosfera de paina. Tinha-se a impressão de que os passantes esqueciam seus cuidados e propósitos, compreendiam que naquele instante eram apenas elementos dum quadro. Moviam-se sem pressa, numa calma silenciosa: andavam de leve, como que flutuando no ar.
Mas a cena durou apenas um rápido minuto. Acenderam-se os combustores, e de repente algo de inesperado aconteceu. Uma rapariga precipitou-se do décimo terceiro andar do edifício Império, deu uma viravolta no ar e caiu hirta e de pé contra as pedras do calçamento, produzindo um ruído seco e agudo, que ecoou no largo como um tiro de pistola."
Os Voluntários (1979), de Moacyr Scliar
Um dos autores que mais escreveram sobre Porto Alegre, Moacyr Scliar documentou a comunidade judaica, a expansão imobiliária, o pequeno comércio e até mesmo os pontos folclóricos do sexo clandestino, como em Os Voluntários.
Um trecho
"Se não me engano, eu achava aquilo tudo muito interessante, muito bonito, mas, se estou bem lembrado, naquele momento eu pensava em outra coisa, pensava mesmo era em mulher. 1952? 1953? Em mulher. Só em mulher. E poderia pensar em outra coisa? Na Voluntários da Pátria?
Eu ajudava meu pai no bar até as sete, oito horas da noite, e então ia jantar esta hora os operários, os caixeiros, os funcionários já tinham ido para casa. De seus quartos nos velhos sobrados as mulheres começaram a emergir. Caminhavam lentamente, equilibrando-se nos altos saltos; ou então postavam-se nas esquinas, encostadas, à parede. Ou ficavam sentados no interior de bares sombrios, os olhos reluzindo na semiobscuridade. Aquilo regurgitava de mulheres. Um rápido exame da geografia sensual de Porto Alegre mostraria uma cidade ocupada por esse amável exército. Na Pantaleão Telles, junto à ponte de pedra em que os Farrapos travaram furiosas batalhas. Um numeroso contingente entrincheirado nas casinhas da Cidade Baixa. Na Azenha, Cabo Rocha era um importante reduto. No Cristal, Mônica reinava solitária e esplêndida, com seu luxo, seu Quarto de Espelhos. Mas havia ainda lugares mais fantásticos: O Cabaré das Normalistas, onde, segundo a lenda porto-alegrense, as moças deixavam cair a máscara da inocência.(...)
Delírio à parte, o principal contingente de mulheres estava no Centro, na Voluntários. Mulheres para todos os gostos e todos os preços, menos os que eu podia pagar."
O Rapaz que Suava Só do Lado Direito (1979), de Antônio Carlos Resende
Um dos autores que melhor casaram o cenário concreto de Porto Alegre com as revoluções íntimas de seus personagens foi Antônio Carlos Resende. No seu segundo romance, ele retrata o furor competitivo e edipiano de um jovem atritado com seu próprio pai em uma prosa experimental que corre como um fluxo, sem marcações gráficas muito evidentes entre as falas de cada personagem. Os cenários incluem a Faculdade de Direito da UFRGS, o Colégio de Aplicação (na época, no Campus central) e o Prinz.
Um trecho
"Hoje, sábado, me levanto às nove, tomo café, barba, banho, lente nos olhos e ligo pra casa da Régia e me dizem que está na aula e só volta ao meio-dia: me visto, compro uns livros na Rua da Praia, cafezinho, cigarro e me toco pro prédio do Aplicação: fico na espera e ao meio-dia ela vai saindo, isolada do grupo, de calça Lee, vou ao encontro dela e meio se surpreende quando me vê: oi, ela sorri e diz oi: pego-lhe a bolsa e digo: falaste que fosse sempre simpático e louco, aqui estou louco e simpático em busca da minha namoradinha, ela só sabe sorrir, acho que não sabe outra coisa, e pergunta onde moro, na Duque quase perto da tua casa, aí convido ela pra vermos o Barry Lyndon na sessão das duas e ela diz que me confirma depois, que ia pedir pros pais, teus pais te dão duro?, não são maravilhosos mas costumo pedir ou avisar, brinco que não vai poder entrar no cinema porque o filme é impróprio, diz que já entrou em filmes impróprios: passamos pela Faculdade, na João Pessoa: é aqui que estudo e ela pergunta se gosto de Direito e digo que não mas que a gente tem de aprender uma profissão, infelizmente, e que meu negócio é escrever, então indago o que ela vai estudar: vou tirar Medicina, boa, depois estudas bastante e curas meu suor (...)"
O Amor de Pedro por João (1982), de Tabajara Ruas
Talvez o grande romance gaúcho sobre a ditadura militar. Tabajara Ruas constrói um épico que avança e recua no tempo e usa uma prosa de corte cinematográfico para abarcar o espírito inquieto do período. Também não abre mão do humor e da sátira.
Um trecho
"O outono de 1968 na cidade de Porto Alegre foi particularmente perigoso. Em cada inocente esquina, em cada parque amarelado de folhas, em cada bar, restaurante, churrascaria, vestíbulo de cinema, quarto de pensão, sala de aula, em porões escuros, em salões iluminados, atento (e astuto, determinado, implacável) espreitava pronto para o bote, o ameaçador maço de folhas oculto no bolso do paletó, um poeta.
Naquele outono do ano de 1968 havia clássicos (melenas negras, olhos no fundo) e modernos (colares, miçangas, sapatos de tênis) e havia tímidos e de olhos baixos, agitados declamadores — condoreiros —, brandindo os calhamaços como rebenques. Havia românticos, tropicalistas, pau-brasilianistas, tradicionalistas, fontes dignas asseguram ter visto parnasianos, deslizando como pálidos fantasmas de dedos muito finos, nas escadarias da Biblioteca Municipal. E também tristes, doidos, mansos, ricos, pobres, remediados, negros, judeus, sexagenários e — segundo depoimento de entendidos — um ou outro hétero. Havia, principalmente, mocinhas chegadas do Interior e fogosos críticos literários a ativar-lhes o brando fogo poético na esperança humana duma trepadinha. (Também os críticos têm razões humanas.) Havia o poeta da Cidade Baixa, que dormia no banco da praça em frente ao antigo cinema Capitólio e que ninguém sabe que fim levou. Havia Quintana fazendo que não era nada com ele na Praça da Alfândega. Havia os poetas da Azenha, do IAPI, da Floresta, do Partenon. Seguramente, havia um poeta em ação na Auxiliadora. Havia muitíssimos poetas."
Cães da Província (1987), de Luiz Antonio de Assis Brasil
Luiz Antonio de Assis Brasil recupera, num romance histórico, a figura do dramaturgo Joaquim José de Campos Leães, o Qorpo-Santo, cruzando-o com o rumoroso caso do linguiceiro da Rua do Arvoredo (atual Rua Fernando Machado). A ironia dá o tom na descrição da pequena Porto Alegre de então.
Um trecho
"A cabeça da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul é um promontório elevado que avança rio adentro, no sentido Leste-Oeste, não mais. No lado norte, o mais protegido, aquele que as pessoas escolheram para morar, estão as casas de residência, as lojas, os arsenais, as boticas, os seleiros, os correeiros e toda gente que trabalha no ímpeto de formar aqui uma grande cidade, flor e orgulho do Império, reluzente marco da presença brasileira nestas meridionais solidões. As casas e as ruas esparramam-se a deus-dará, desobedecendo quase por método às ordens de um famoso capitão Montanha, homem que em certa era e certo dia disse: 'Aqui vai ser a rua principal, depois as outras serão paralelas e perpendiculares', aplastando a ignorância dos primeiros moradores com tantas palavras difíceis. Imagine, o capitão Montanha querendo ser um novo Rômulo que com seu arado demarcou os limites da velha Roma, no tempo das antiguidades. As ruazinhas espremem-se e se chocam, caindo a ribanceira bem ao modo português, as moradias correndo parelhas umas às outras e tão grudadas que da casa em frente se ouve o que se fala aqui, é só apurar os ouvidos."
O Segundo Tempo (2006), de Michel Laub
Michel Laub narra uma história que tem como pano de fundo o Gre-Nal do Século, disputado em 12 de fevereiro de 1989. O livro conta o amadurecimento do jovem protagonista, dividido entre a mãe deprimida e o pai infiel — e precisando proteger o irmãos caçula do desmoronamento familiar. Em uma cena cheia de subentendidos, o rapaz é levado um dia para conhecer a amante do pai, no Mercado Público.
Um trecho
"Eu não tinha aula naquela manhã, não lembro bem o motivo. Saímos muito cedo de casa, o pai tinha um certo orgulho em acordar de madrugada. Quando eu tinha a sua idade, ele dizia em tom solene, ajudava o seu avô e tinha as mãos ásperas de segurar caixote. (...)
Na década de 1980, o Centro não era muito diferente de hoje. As lotéricas penduravam cartazes de zebras, os cinemas exibiam kung fu e pornô. O mercado era um pavilhão de sonâmbulos com unhas pretas, fomos lá comprar peixe e temperos para o minimercado. Nós pusemos tudo na Kombi, uma das lanchonetes servia café de bule. Assim que sentamos, e o pai iniciou um concerto de goles barulhentos, como se estivéssemos em casa e aquela fosse uma manhã como qualquer outra, nesse momento a convidada dele chegou. O nome dela era Juliana. Era magra e tirou um pacote da bolsa, um boneco de comandos, seu pai disse que você gosta de desenho animado. Ele passa a tarde vendo isso, o pai respondeu, o que não era verdade. Eu também lia gibis, jogava botão, Bruno era pequeno e eu ajudava a cuidar dele."
Mãos de Cavalo (2006), de Daniel Galera
Neste romance de Daniel Galera, o protagonista dirige por Porto Alegre e flagra a Capital como uma cidade em transformação.
Um trecho
"O nome suscita uma nostalgia difusa, não de todo agradável, pra dentro da qual tem a sensação de penetrar fisicamente ao deixar o último trecho reformado da Aparício Borges e prosseguir (...) pela Av. Teresópolis, que segue em obras por umas centenas de metros até dar lugar a um cenário que lhe parece preservado, com o mesmo asfalto antiquado e os canteiros centrais com árvores enormes que lembrava ver com frequência até uns cinco anos atrás, quando ainda morava na Zona Sul e costumava passar por ali. Fantasia que a construção interminável da Terceira Perimetral é uma ameaça que o persegue e contra a qual agora, dentro do carro, está apostando uma corrida, como já tinha apostado corrida contra a sombra de nuvens em estradas. Como um fluxo piroclástico, o concreto das novas avenidas avançava como uma onda gigante e vinha cobrindo o asfalto, as calçadas, as árvores, os pontos de ônibus e os veículos atrás dele, e era necessário afundar o pedal do acelerador e chegar à Esplanada antes que fosse tarde."