Um projeto de lei pretende proibir, em Porto Alegre, o comércio, a publicação, a distribuição, a difusão e a circulação do conteúdo integral ou parcial do livro Mein Kampf (Minha Luta, na tradução do alemão), de Adolf Hitler. As proibições previstas englobam igualmente as publicações em formato digital (e-books). A obra, que é considerada uma espécie de bíblia de propagação das ideias nazistas, caiu em domínio público em 1º de janeiro de 2016, após sete décadas da morte do antigo líder alemão. Dessa maneira, o livro pode ser comercializado em locais onde não há proibição expressa, como é o caso da Capital.
— O que me preocupa muito é que, nos últimos tempos, um dossiê neonazista da polícia identificou 40 moradores do Rio Grande do Sul que integravam um movimento extremista — explica a vereadora Mônica Leal (PP), sobre a sua motivação para propor o projeto de lei.
Em matéria publicada em 18 de fevereiro deste ano, GZH mostrou que 40 habitantes do RS integravam grupo extremista na chamada deep web, considerada a internet obscura por não possuir regulamentação e por ser difícil de se rastrear o que é divulgado lá.
O projeto de lei ainda esperava por parecer, em 22 de setembro, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Municipal. A vereadora antecipa que pedirá priorização nas discussões já nesta quarta-feira (28).
— O objetivo dessa minha iniciativa é impedir que a obra circule, exalte, incentive e espalhe aquelas ideias de algo que jamais pode acontecer novamente com a humanidade — afirma Mônica, que apresentou a exposição dos motivos e o próprio projeto em 12 de janeiro de 2022.
Minha Luta foi escrito enquanto Hitler estava preso em Munique, na Alemanha, em 1924. O primeiro volume de dois tomos foi publicado pela editora do Partido Nazista — a Eher-Verlag —, no ano seguinte. A segunda parte saiu em dezembro de 1926. As principais ideias do livro, em especial o antissemitismo, foram aplicadas durante o período em que a Alemanha esteve sob o jugo do nazismo e no decorrer da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Os direitos do livro, que pertenciam a Hitler, foram entregues ao Estado da Baviera, por ordem do próprio líder. Mas a Baviera se recusou a republicar e a permitir republicações da obra. Em outubro de 1945, Minha Luta foi proibido de ser divulgado e vendido no território alemão.
— Não é admissível qualquer comportamento que remeta ao nazismo hoje em dia. O nazismo despreza a democracia — diz a vereadora, salientando que, se o projeto for aprovado, a fiscalização ocorrerá a partir de denúncias.
Conforme o projeto, quem descumprir a lei, além da responsabilidade criminal, estará sujeito à apreensão do material da obra que estiver em sua posse; advertência; multa; suspensão do Alvará de Localização e Funcionamento do estabelecimento; e cassação do Alvará de Localização e Funcionamento do estabelecimento, em caso de reincidência.
Na exposição dos motivos do projeto, a vereadora escreveu: "A difusão dessa obra tem um potencial lesivo incalculável, além dos danos que já produziu por meio da propagação de ideais nefastos que a obra preconiza, e que protagonizou, seguramente, uma das páginas mais sombrias da história recente da humanidade".
Os colegas da Câmara ainda aguardam informações sobre o projeto de lei. O vereador Airto Ferronato (PSB) destaca que não conhece os detalhes da proposta da vereadora.
— Com o surgimento desses movimentos neonazistas que estão se fortalecendo, não vejo esse projeto de lei como algo negativo. Sou totalmente contrário a eles (neonazistas) — revela, pontuando que precisa estudar o material a ser apreciado.
A vereadora Laura Sito (PT) também aprova a iniciativa da colega.
— Proibir um livro como esse é demonstrar respeito ao passado e proteção ao futuro. É importante se ter em mente o que ocorreu e a narrativa correta para que a história não se repita — reflete. — Não se trata de tolher a liberdade de expressão. O nazismo, ainda hoje, ameaça muitas vidas — diz Laura, relatando as intimidações que a bancada negra tem sofrido na Câmara de grupos de extrema-direita por meio das redes sociais.
O presidente da Comissão de Ética da Câmara, vereador Cassiá Carpes (PP), disse que não sabia do projeto de lei. Mas antecipa que não vai ser votado na Casa, por enquanto.
— Neste momento, pode causar muito transtorno. Não será votado nada polêmico durante esta semana — garante, citando que muitos vereadores estarão envolvidos com o primeiro turno das eleições até domingo (2).
Polêmicas em torno da obra
O livro Minha Luta sempre esteve envolto por polêmicas e é tido como um insulto às vítimas do Holocausto. Em janeiro de 2016, GZH publicou matéria dizendo que a publicação havia caído em domínio público. Em um trecho, o histórico da publicação no Brasil é contado:
"No Brasil, Minha Luta foi lançado pela Editora Globo, de Porto Alegre, em setembro de 1934. Proscrito pela ditadura Vargas em 1942, toda a tiragem foi queimada a mando do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Minha Luta só seria reimpresso em 1962, pela editora paulista Mestre Jou. A edição foi apreendida e proibida logo após a publicação de uma portaria de 26/07/1962. Com a ditadura militar, permaneceu vetado. Em 1983, apesar da interdição, foi publicado pela paulista Editora Moraes. Em 1987, a Editora Pensamento, de São Paulo, lançou sua versão, baseada na edição de 1934 da Globo. Em 1990, foi a vez da gaúcha Editora Revisão lançar a sua. Uma nova edição da Editora Moraes, rebatizada como Centauro, saiu em 2001, sendo reimpressa em 2004 e 2005. Novas tiragens foram suspensas após uma série de processos na Justiça em que os donos da Centauro foram acusados de racismo. Com a liberação dos direitos autorais, a largada na corrida pela publicação da nova edição brasileira foi dada pela Geração Editorial, editora paulista que tem por tradição publicar livros considerados 'polêmicos'."
O professor do Programa de Pós-Graduação em História Edison Hüttner, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), que tem estudado objetos com suástica no Estado, acredita que apenas proibir o livro na Capital não vai resolver a questão.
— Como a obra já está em domínio público, muita gente vai ter acesso a ela da mesma forma. No meu ponto de vista, o livro deveria servir para análise crítica. Quando se proíbe, não há mais espaço para se criticar a obra — observa. — Proibir não é o caminho, é preciso dialogar — completa o docente.
Existe uma proibição de venda e circulação da obra restrita ao município do Rio de Janeiro, em função de uma de lei municipal sancionada em 2022. Porém, o livro não está proibido de ser comercializado por lei federal. O neonazismo é considerado crime no Brasil, conforme o artigo 20 da Lei 7.716/1989, com pena estabelecida de dois a cinco anos de prisão e multa.