*Jornalista e doutora em Letras pela PUC-Rio. Pesquisadora da história do livro.
2016 será o "Ano Hitler". Pelo menos para o mercado editorial. Isso porque Mein Kampf - um misto de livro de memórias e projeto político do ditador mais odiado da História - entrou em domínio público em 31 de dezembro de 2015. Passados 70 anos da morte de Adolf Hitler, sua reedição continua provocando acaloradas discussões na Alemanha e no mundo. Tachada de maldita, a "Bíblia názi", porém, é mais conhecida por sua fama do que por seu conteúdo. Escrito em 1924, enquanto o líder do partido trabalhista cumpria prisão depois de tentar um golpe de Estado em Munique, o primeiro volume foi publicado no ano seguinte pela editora do partido nazista, a Eher-Verlag, e o segundo, em dezembro de 1926. Até 1945, 12 milhões de exemplares haviam sido vendidos na Alemanha. Com a queda do regime nazista, passaram a ser considerados uma herança infame e comprometedora e foram, em sua maioria, destruídos. Em outubro de 1945, Mein Kampf foi formalmente proibido de ser divulgado e vendido no país, e seus direitos autorais foram entregues ao governo da Baviera.
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O libelo nazista, porém, não se limitou a circular apenas na Alemanha. Com a ascensão de Hitler ao poder em 1933, foi traduzido em mais de 20 idiomas, tornando-se em um best-seller mundial. No Brasil, Minha Luta foi lançado pela Editora Globo, de Porto Alegre, em setembro de 1934. Proscrito pela ditadura Vargas em 1942, toda a tiragem foi queimada a mando do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Minha Luta só seria reimpresso em 1962, pela editora paulista Mestre Jou. A edição foi apreendida e proibida logo após a publicação de uma portaria de 26/07/1962. Com a ditadura militar, permaneceu vetado. Em 1983, apesar da interdição, foi publicado pela paulista Editora Moraes. Em 1987, a Editora Pensamento, de São Paulo, lançou sua versão, baseada na edição de 1934 da Globo. Em 1990, foi a vez da gaúcha Editora Revisão lançar a sua. Uma nova edição da Editora Moraes, rebatizada como Centauro, saiu em 2001, sendo reimpressa em 2004 e 2005. Novas tiragens foram suspensas após uma série de processos na Justiça em que os donos da Centauro foram acusados de racismo. Com a liberação dos direitos autorais, a largada na corrida pela publicação da nova edição brasileira foi dada pela Geração Editorial, editora paulista que tem por tradição publicar livros considerados "polêmicos".
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Já na Alemanha, desde 2009 o governo bávaro prepara, com a colaboração de pesquisadores do Instituto de História Contemporânea de Munique, uma versão historicamente comentada com base no texto completo de Hitler, a ser lançada ainda neste mês. De suas 2 mil páginas, 780 contêm os 27 capítulos originais de Mein Kampf. Nas demais, vão introdução, índice e mais de 5 mil comentários. O volume custará 59 euros. Outras três versões estão sendo planejadas: uma em inglês, outra no formato de livro eletrônico e a terceira como audiolivro. Também está sendo estudada uma edição escolar.
Se Mein Kampf nunca deixou de ser publicado em sua versão impressa, com a Internet descolou-se de sua materialidade e tornou-se acessível, mundial e gratuitamente, a todos os leitores. É possível adquirir, na web, exemplares impressos na língua inglesa em plataformas comerciais internacionais como o Ebay e a Amazon, e, no Brasil, no site Estante Virtual, que agrupa sebos de todo o país. Nele há desde uma versão de 1933, em alemão gótico, até edições em português das diferentes editoras nacionais que o publicaram. Também é fácil encontrar longos trechos do manifesto de Hitler, ou mesmo a obra integral, em formato eletrônico, em diversos idiomas, incluindo o português, para download gratuito, ou à venda em formato e-book. Desde novembro de 2012, a versão em inglês em formato digital está disponível nos websites da Amazon e do iTunes, tendo chegado à lista de mais vendidos encabeçando a categoria "Propaganda e Psicologia Política", após ter sido baixada mais de 100 mil vezes. Diante de tamanha popularidade e da liberdade de circulação de Mein Kampf no mundo virtual, uma pergunta se impõe: proibir sua reimpressão não seria uma medida anacrônica, uma vez que o texto de Hitler já se encontra em uma espécie de domínio público informal?
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A entrada de Mein Kampf em domínio público a partir de 1º de janeiro de 2016 é a ponta do iceberg de um debate maior, o da censura de livros versus a liberdade de expressão. Essa disputa não é nova, mas se agrava pelo fato de seu autor ser um dos líderes políticos mais odiados da Humanidade e de seu livro ter entrado para a história como um legado maldito. Para os que se colocam contra a reedição de Meink Kampf, ele é um insulto às vítimas do Holocausto e deveria ser permanentemente esquecida no lixo da História. Para os que defendem a publicação de uma edição crítica da obra, esta é melhor forma de combater a mistificação do texto de Hitler e o racismo presente nele. Afinal de contas, não é dentro de si que o veneno carrega seu próprio antídoto?