Os muros do número 600 da Rua Santo Antônio, no bairro Bom Fim, em Porto Alegre, abrigam uma casa de dois pisos que é anunciada na internet por R$ 700 a diária em uma plataforma de aluguéis por prazos curtos. Não fosse por uma placa em bronze na calçada e as pichações sobre a tinta cinza, seria apenas mais um imóvel antigo adaptado para hospedagem na Capital. O casarão abrigou, entre 1964 e 1966, um centro de tortura e detenção clandestina de prisioneiros ilegais da ditadura militar.
A residência segue preservada pelos proprietários e traz sua memória bem registrada a poucos metros do portão principal. Em 2015, por ação do movimento de Justiça e Direitos Humanos, com apoio do Ministério Público do Rio Grande do Sul e do governo do Estado, foi instalada ali a placa com a explicação das práticas desumanas que aconteciam do lado de dentro, denunciando crimes que seguiram impunes. Sete anos depois, a decoração agradável mencionada por alguns comentários positivos na página do anúncio na internet acabaram convencendo inquilinos em potencial de que o imóvel seria um bom lugar para se hospedar.
No entanto, a casa foi removida do catálogo do aplicativo de aluguéis Airbnb depois que uma usuária comentou o susto da descoberta no Twitter. A ilustradora Carolina Porfírio, 36 anos, ia contratar uma estadia no local, mas começou a suspeitar do bom preço, aparência e localização. No espaço de comentários, um usuário identificado como Cristhian, de São Paulo, inicia sua análise com um chavão: “A pior experiência que já tive com um Airbnb (...)”. Mas depois opina:
“(...) A casa tem uma energia péssima, vários pichos na frente com a palavra 'sangue'. A casa estava toda manchada de pingos vermelhos e na frente uma placa da prefeitura dizendo que neste local morreram muitas pessoas torturadas pela ditadura, pois é um ex dopinho.”
Dopinho (ou Dopinha) é o termo utilizado para nomear o local, pioneiro das unidades do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). As forças militares que aplicaram o golpe em 1964 levaram, segundo pesquisas, dezenas de prisioneiros políticos para serem torturados e mortos naquele casarão. “Não é informado nada sobre isso no anúncio”, exclamou Carolina na publicação em sua rede social que alertou a plataforma.
Na manhã desta quinta-feira (4), GZH foi até o endereço e encontrou uma equipe da CEEE-Equatorial fazendo uma ligação de energia elétrica no imóvel. Era possível ler pichações no muro cinza com as frase “aqui houve tortura”, e as palavras “sangue” e “memória, verdade e justiça” até do outro lado da rua. Não havia sinais de que a casa estivesse habitada. O link para alugar o imóvel no Airbnb não funciona mais, e não foram encontrados outros registros semelhantes em sites de imobiliárias convencionais da Capital.
À reportagem do UOL, a proprietária do local, identificada no Airbnb como Maria Laura, afirmou que o imóvel sempre foi da família. “O fato de ser Dopinha na década de 1960 é algo que queremos esquecer”, afirmou.
Leia a nota divulgada pelo Airbnb sobre o caso:
"O Airbnb tem regras e políticas que determinam como a comunidade deve usar a plataforma para criar uma experiência em que as pessoas se sintam em casa em qualquer lugar e está comprometido a aplicar suas políticas para proteger a comunidade."