A alta da inflação tem levado a população a pesquisar alternativas para comprar mais barato (ou menos caro) um item básico de alimentação. Uma estratégia para driblar os elevados preços do leite em Porto Alegre tem sido praticada por um grupo público do Facebook, o Bairro Santa Teresa, que existe há nove anos, possui 43,5 mil integrantes e representa essa região da zona sul da Capital. Os participantes avisam onde é possível encontrar o produto com valores mais baixos, inclusive com fotos das prateleiras.
Em uma postagem recente, por exemplo, aparecia uma promoção com uma determinada marca de leite sendo vendida a R$ 5,59 a unidade. Uma participante, em outro post, perguntava aos demais internautas se alguém sabia de algum lugar onde o leite estivesse barato. Também havia ofertas de produtos e serviços entre os membros da própria comunidade. Em tempos de alta da inflação e dos preços, vale tudo para garantir o melhor valor.
A vendedora autônoma Bruna Marx, que produz e comercializa doces, integra o grupo, apesar de viver no bairro Lomba do Pinheiro. No total, ela integra mais de cem grupos semelhantes nas redes sociais. Para produzir os doces para venda, a comerciante precisa de dois litros de leite por dia, o que dá 60 litros por mês.
— Aqui na Lomba do Pinheiro, a média do valor do leite mais barato está beirando R$ 6,99 — cita, dizendo que uma caixa com 12 unidades das marcas mais conhecidas chega perto dos R$ 100.
A iniciativa de busca online por preços mais em conta tem dado resultados, especialmente neste momento, em que uma caixa de leite pode custar, dependendo do mercado, mais de R$ 7. Isso significa que uma caixa com 12 unidades pode sair por até R$ 84. Dessa maneira, pesquisar os lugares com melhores ofertas é algo obrigatório antes de sair de casa. E se isso for feito nas postagens diárias do grupo, a tarefa pode ser mais rápida e simples.
— Há compartilhamentos até de aplicativos que dão desconto no gás — afirma, salientando que fica atenta também a promoções de carne e azeite, entre outros itens.
Por causa da alta do leite, a vendedora precisou reajustar os preços de seus doces para os clientes:
— Além do leite, o leite condensado também subiu muito. Dependendo do mercado, vai chegar a R$ 8. Nem um mês atrás custava R$ 4. O queijo, o creme de leite e o leite em pó foram outros que subiram — atesta.
Temos recebido relatos de mães que estão dando água com açúcar e café preto para os filhos porque não tem leite. As pessoas estão indo para as redes sociais e, de porta em porta, pedir comida para estranhos. É muito triste e lamentável o que a gente está passando
VANESSA SILVEIRA
idealizadora da Anjas de Batom
A presidente da Associação de Moradores da Vila Rio Branco, no Morro Santa Tereza, Maria da Graça Dias de Oliveira, confirma as dificuldades para comprar leite na região.
— Está horrível, ainda mais eu que tenho um monte de criança aqui. Paguei R$ 7 o litro na compra da última vez — recorda.
Na associação, 70 crianças são atendidas por dia no turno inverso da escola. Conforme estima, nove caixas de leite de um litro são consumidas diariamente, o que representa 270 caixas por mês.
— Não tem como a gente ficar sem — resume, reconhecendo que as doações das pessoas e a ajuda da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) impedem a entidade de ficar com as despensas vazias.
A escassez de doações de leite se estende a outras entidades que auxiliam comunidades carentes. A empresa de festas de amor voluntário Anjas de Batom, com sede no bairro Cristal, é um exemplo. Conforme Vanessa Silveira, idealizadora do projeto, que vai completar seis anos em dezembro, no auge da pandemia, conseguia doar cem cestas básicas por semana. Agora, é o mesmo número, mas por mês.
— Antes atendíamos cerca de cem famílias, agora ajudamos menos de dez. Hoje, com uma caixa com 12 leites a quase R$ 100, 10 famílias significam R$ 1 mil. Para dar uma caixa com 12 litros está bem complicado — relata, mostrando algumas cestas básicas, todas sem leite, que já estão destinadas para pessoas de baixa ou nenhuma renda.
Segundo Vanessa, o leite é necessário para o aprendizado da criança e para a saúde. Mas as mães têm sido obrigadas a optar se colocam gás ou leite em casa.
— Temos recebido relatos de mães que estão dando água com açúcar e café preto para os filhos porque não tem leite. As pessoas estão indo para as redes sociais e, de porta em porta, pedir comida para estranhos. É muito triste e lamentável o que a gente está passando — compartilha.
Uma das próximas ações das Anjas de Batom será realizada, em parceria com uma empresa, às 14h de 30 de julho na Praça da Alfândega, no Centro Histórico. Será feito um arraial para 150 pessoas em situação de rua. Haverá mesas, cadeiras e músicos no local. Quem quiser ajudar com doações de leite, cestas básicas ou dinheiro pode procurar a empresa nas redes sociais ou enviar um Pix (a chave é o e-mail: anjasdebatom@gmail.com).
Cenário desafiador para a cadeia do leite
O momento de elevação dos preços do leite tem deixado muita gente sem o produto na mesa, mas há todo um contexto econômico para explicar como essa situação se consolidou. Segundo o presidente da Cooperativa Santa Clara, Gelsi Thums, o setor lácteo vem atravessando um cenário muito ruim há um ano e meio.
— Foi um cenário completo de desafio para a atividade leite. Preços muito baixos, aí veio uma inflação com o índice de aumento dos insumos e produtos usados na cadeia leiteira. No ano passado, dispararam, com alguns itens chegando a 200%. Depois veio um cenário de estiagem e um verão fora de curva com calor. Em meados de março, começou a chuva e o excedente de umidade. Todos os cenários foram desfavoráveis para a produção leiteira — disse durante o primeiro final de semana do Festiqueijo, que ocorre em Carlos Barbosa, na serra gaúcha.
Conforme Thums, o aumento dos valores no preço do leite não significa que os produtores estejam lucrando em cima:
— O preço subiu, mas não é que o produtor está ganhando dinheiro, ele está começando a recuperar o prejuízo. Ele vem em um ano e meio de prejuízo. Esses preços que estão hoje nas gôndolas dos supermercados para o consumidor não são reflexo lá no campo. A margem do produtor é 30% desse montante do que está na gôndola.