O muro da Escola Municipal de Educação Básica Doutor Liberato Salzano Vieira da Cunha, no bairro Sarandi, que já foi abrigo para usuários de crack em 2011, recebeu, nesta sexta-feira (27), um bicho preguiça, uma arara e uma maria-leque-do-sudeste em um cenário colorido. Os animais estão sob uma seringueira e ao lado da horta da escola, e foram desenhados pelo artista Alexandre Filiage, paulista de 56 anos, para lembrar a comunidade da zona norte de Porto Alegre da importância de se preservar a natureza, especialmente a mata atlântica.
A iniciativa é patrocinada pela empresa AkzoNobel e financiada pelo Ministério do Turismo via lei de incentivo à cultura. Atualmente, restam apenas 5% do bioma que já se estendeu desde o Rio Grande do Sul até o Rio Grande do Norte. Cerca de 70% da população do país vive onde antes havia essa expressão da fauna e flora brasileiras.
Durante a semana em que Filiage levou as cores e traços selvagens da mata ao muro de concreto pichado, recebeu visitas de vizinhos da escola e de alunos curiosos. Do lado de dentro do muro, predomina o capricho no pátio, com uma horta cercada por árvores e quadras esportivas utilizadas por quase 1,4 mil alunos da Educação Infantil até a Educação de Jovens e Adultos. Nesta sexta, o artista encerrou sua participação com uma palestra para os alunos do oitavo e nono anos da escola, provocando-os para consumirem e produzirem mais arte.
— Esse trabalho tem um lado de conscientização e outro de estética. São murais bonitos que atraem as pessoas a se interessarem pelo trabalho — comentou, depois de conversar com os jovens, de 13 a 16 anos. — Muitas vezes, os pichadores migram para outros tipos de arte, e este pode ser um caminho. A própria pichação tem sua importância, acho legal as frases que trazem reflexões e a energia que quem faz tem para se expressar — complementou o artista, que começou a carreira como ilustrador publicitário aos 18 anos.
O projeto Muros na Mata Atlântica repete essa ação desde 2015, quando começou, em São Paulo. Filiage já rodou 10 cidades entre as regiões Sudeste e Sul, com curadoria da esposa, Patrícia Pinto, bióloga, que o auxilia na escolha das figuras a serem reproduzidas. Além do trio ao lado da entrada principal da escola no Sarandi, na Rua Xavier de Carvalho, outro mural foi iniciado por ele no pátio interno. Estão contornados, ainda em tinta preta, um tucano, um tamanduá, um macaco, uma onça e um jacaré. As figuras serão coloridas por alunos da escola, que já têm o costume de pintar paredes como atividade das aulas de artes.
— Gostei da arara por causa das cores e porque também gosto de desenhar animais — disse Cristian Samuel Ribeiro, oito anos, aluno do terceiro ano do Ensino Fundamental da escola, ao passar pelo muro colorido, prometendo que faria parte da pintura dos bichos desenhados no pátio interno.
— Eu já me identifiquei mais com a preguiça — emendou a mãe dele, Daiane, ao lado de outras vizinhas que se juntavam para comentar a novidade no local.
Contraste com o lixo
Compensando negativamente a beleza dos animais selvagens reproduzida nos murais, chamava atenção de quem passava pelo local — e do próprio artista — uma pequena montanha de lixo acumulada na calçada em frente à mais nova obra de arte do bairro.
— Entre quarta (25) e quinta (26), enquanto eu finalizava a arte, uns 10 funcionários da prefeitura vieram com dois caminhões e juntaram bastante lixo ali. Mas, enquanto eles juntavam, chegava gente para despejar mais — contou Filiage, feliz por ter embelezado a região, mas preocupado: — Deveriam fazer um jardim nesse canteiro, colocar bancos, ocupar de outra maneira.
O canteiro referido por ele é uma das margens do Arroio Sarandi. Em 30 de março, esse mesmo córrego transbordou por conta da chuva e do lixo acumulado, fazendo com que a água suja invadisse casas na região mais baixa do bairro.
— Já colocamos placa, circulamos com carro de som, e fomos até ameaçadas com arma quando viemos pedir para não colocarem lixo aqui — desabafou Lucília Conceição, 60, conselheira da Associação dos Moradores da Rua Serafim Alencastro e Entorno (Amarsae), que enfrenta alagamentos desde 2020 na região.
Há uma câmera de monitoramento na esquina onde este diálogo de denúncia acontecia. Segundo Lucília, os cabos dela foram roubados.
— Tínhamos grupo de WhatsApp com a Guarda Municipal, mas, quando a viatura chega, quem veio despejar lixo já tinha ido embora. E fazem isso com Kombi, com carro bom, é gente com dinheiro — complementa.
Em nota, o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) avaliou a situação:
"Em resposta à reportagem, a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos, por meio do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), esclarece que a via é alvo de descarte irregular de resíduos, gerando foco crônico de lixo. A remoção de focos é realizada três vezes por semana, nas terças, quinta-feiras e sábados pelas equipes do Setor Norte do DMLU, com o recolhimento de aproximadamente dez toneladas de materiais no total. Além disso, o Serviço de Fiscalização do DMLU atua para coibir o descarte inadequado de resíduos seja por meio de campana ou denúncias recebidas. Assim, solicitamos a colaboração de todos para a manutenção da limpeza urbana. O sistema 156 está à disposição para receber denúncias ou informações que ajudem a identificar infratores que depositam materiais irregularmente na área."
Cercados pelo crack
Em 2011, em reportagem do Diário Gaúcho, a mazela da região do Colégio Liberato Salzano Vieira da Cunha ia além do lixo e das enchentes do arroio. Uma praga de crack dominava não só a área da escola, transformando os alunos em reféns do medo, mas diversas instituições educacionais da Região Metropolitana.
Eram tempos difíceis da chegada da droga chamada óxi. Alunos de Ensino Fundamental eram vítimas por dois motivos: vistos como potenciais novos consumidores de crack e presas fáceis para pequenos furtos, já que tênis e celulares eram trocados por pedras que custavam de R$ 5 a R$ 10. O óxi, droga mais tóxica que o crack, chegara ao Estado valendo ainda menos, R$ 2.
Em 11 de maio daquele ano, às 14h50min, três homens usavam crack encostados no muro dos fundos do colégio. A menos de 20 metros deles, alunos jogavam futebol no pátio. Era o mesmo muro hoje pintado com as cores vivas da mata atlântica.