— Já é raro a gente ver um orelhão, ainda mais em uma cobertura... — diz o pintor Júlio César da Silva.
Ele trabalha na reforma de um apartamento no nono andar de um prédio na Rua Duque de Caxias, no Centro Histórico de Porto Alegre. E, da janela do imóvel, é possível ver, no outro lado da via, uma cobertura e, nela, um item chama atenção por estar algumas dezenas de metros acima de onde já foi o seu habitat natural, as calçadas. Se trata de um orelhão. Com telefone e tudo.
Quem fez a ligação entre o aparelho que vive nas alturas e o público foi a arquiteta Rafaela Ritter, que está coordenando a reforma no apartamento do irmão, Tiago, de onde o orelhão pode ser visto. Ela postou em suas redes sociais a imagem da cobertura com a legenda: "Tem coisas que só no Centro Histórico você encontra".
— Nem fui eu que vi, quem me chamou a atenção foi o marceneiro, o Aroldo Torres, que estava lá. A gente estava vendo a vista, porque tem uma vista bonita do apartamento ali, aí eu disse "dá pra ver o rio, a Igreja das Dores", aí ele falou "e dá pra ver o orelhão". Perguntei "mas que orelhão?", aí ele me mostrou. "Mas não é possível", eu disse. Daí tirei a foto e coloquei no meu Instagram — narra, aos risos, Rafaela, que não imaginava que a história pudesse gerar alguma repercussão.
O prédio no qual a cobertura abriga o orelhão como seu principal elemento decorativo fica bem na esquina das ruas Duque de Caxias e General Canabarro. A reportagem foi até o local tentar desvendar como que o aparelho telefônico foi parar no topo do edifício, apesar do pintor Júlio César da Silva dar poucas esperanças de resolver o mistério:
— Desde que começamos a obra, não vimos ninguém ligando do orelhão. Na verdade, ninguém apareceu em cima da laje. E olha que nós ficamos cuidando.
Ao chegar no endereço, a dona Vanda Jarusczewski, zeladora do prédio do orelhão, afirmou que, provavelmente, não seria fácil ter mais informações sobre o aparelho telefônico nas alturas, uma vez que o dono da cobertura estava viajando há mais de quatro anos e ninguém estava frequentando o apartamento neste período.
Ela adiantou, porém, que o dono do imóvel estava em Minas Gerais, que se chama Ronaldo Collares Saraiva e que desde que começou a trabalhar no prédio, há mais de 20 anos, o orelhão já estava lá.
— Eu nunca me interessei em saber a origem do orelhão, não. E nem sei como foi parar lá, mas tem louco pra tudo, né? — brinca Vanda que, depois de um tempo de conversa, concordou em compartilhar o número do celular dono do imóvel.
Alô?
Diretamente de Minas Gerais, Saraiva atendeu a reportagem e, antes de contar a história do seu item peculiar, quis saber como a reportagem tinha descoberto o orelhão em sua cobertura. Após se inteirar da história, ele confirmou que era proprietário — e que a curiosidade para saber como chegaram até ele tinha uma explicação: o dono da cobertura é jornalista.
O proprietário do apartamento trabalhou por 43 anos no Banco Central, até se aposentar. Há quatro anos, decidiu voltar para a sua terra, Minas Gerais, para tirar "umas férias longas", ficando ao lado da mãe. Porém, pretende voltar para Porto Alegre, tanto é que não se desfez de seu imóvel — mas a pandemia atrasou ainda mais o seu retorno. No verão do ano que vem, pretende estar de volta.
Mas e o orelhão? Bem, ele comprou há mais de 20 anos, como dica de decoração de sua irmã, Fátima. O protetor foi adquirido de uma empresa da Zona Sul, a qual ele não recorda mais o nome, mas que vendia os produtos novos, pintados. Já o aparelho telefônico, ainda do modelo de ficha, foi encontrado em um antiquário. A marca, se ele não se engana, é Ericsson. O que ele lembra é que o conjunto todo "não foi tão caro" e não teve problemas para instalar.
— Mas houve, inclusive, gente, não sei se foi questão de inveja, que descobriu isso, um tempo atrás, e me denunciou para a Prefeitura. Aí, o pessoal da Prefeitura veio me indagar e eu expliquei. O pessoal não se conformava que eu tinha o orelhão. Eu paguei, pô, é tudo legal. Tenho até nota fiscal, que deve estar guardada aí no meu apartamento — conta Saraiva.
E o mais interessante: o orelhão era funcional até o seu dono deixar Porto Alegre. O jornalista adaptou o aparelho à sua linha telefônica e, caso alguém quisesse fazer uma ligação, bastava tirar o fone do gancho, digitar o número e sair falando.
— O pessoal que frequentava aí em casa gostava muito. Quando eu fazia festas, o pessoal achava excelente, criativo. Hoje, ele é um item decorativo, mesmo — recorda.
E vale destacar que, bem em frente ao prédio de Saraiva, também tem um orelhão, um dos poucos que restam na cidade, todo rabiscado e já meio caído, que nem deve saber da existência de seu igual lá no alto, na cobertura, tendo uma vista privilegiada da Capital. Alguns têm mais sorte que outros, mesmo.