O cliente entra pela porta carregando uma sacola cheia de DVDs, caminha até o caixa, entrega os filmes para o seu Álvaro, que começa a verificar os discos e dar baixa no computador. Enquanto o proprietário da loja mexe nos estojos, tanto ele quanto o locatário comentam sobre cada uma das produções, emitindo opiniões embasadas, de quem realmente conhece e ama o cinema. A análise ao vivo é aprofundada e facilmente faria sucesso em algum canal do YouTube, sendo sensação dos cinéfilos mais fervorosos.
Porém, esse bate-papo é privado, feito na intimidade de cliente-atendente, ambos com a barriga encostada no balcão, sem compromisso nenhum com audiência, cliques, algoritmo ou tempo. O único público que tem o privilégio de acompanhar é aquele que, por coincidência, está na videolocadora E o Vídeo Levou no momento em que ele acontece. A cena é uma viagem no tempo, sem uma tela intermediando a conversa. E esta experiência nostálgica, que sobrevivia bravamente no bairro Jardim Botânico, em Porto Alegre, porém, está com os dias contados.
Fundada em 1989 pelos irmãos Álvaro e Edla Bertani — hoje, aposentada —, a locadora, que navegou pelas fases do VHS, do DVD e do blu-ray, depois do anúncio no ano passado, bateu o martelo e fechará as suas portas na primeira quinzena de abril, abrindo espaço para um novo empreendimento: uma agência de intercâmbio, que já começa a tomar forma no prédio que, até pouco tempo atrás, era inteiramente preenchido por filmes — e pelos cinéfilos, é claro.
Hoje, os clientes de aluguel são parcos. Dos fiéis, aqueles com mais de uma década de cadastro, sobraram uns quatro ou cinco — na parte das vendas, porém, o número de interessados em levar as mídias físicas para casa ainda é razoavelmente alto. Tanto é que a loja, que já teve mais de 40 mil títulos, agora está com cerca de 15 mil. E o saldão de tudo por R$ 10 pretende zerar o estoque antes do último apagar das luzes.
— Acontece bastante de pais entrarem aqui para mostrar para os seus filhos como que eles viam filmes no passado. A locadora virou uma espécie de museu e eu me sinto como um bicho empalhado — conta Seu Álvaro, bem-humorado, mas sempre atento ao seu balcão e antenado no movimento da loja, pronto para abandonar a entrevista a qualquer instante e partir para ajudar algum cliente que esteja atrás de um título específico ou de dicas.
A qualidade do serviço não diminui, mesmo na reta final. O espaço impecavelmente limpo, os títulos muito bem organizados, o bom humor do proprietário e do gerente Charles Schumacher, assim como o cheiro de incenso que parte do balcão, onde fica um mostruário com uma centena deles para vender, criam uma atmosfera que, definitivamente, streaming nenhum consegue emular. É uma experiência que contempla quase todos os sentidos — antes, quando tinha sorvete para vender, ela era completa.
Amizade
Dos quatro ou cinco clientes antigos e fiéis da E o Vídeo Levou, dois deles apareceram na loja na segunda-feira (21) de tarde, quando a reportagem esteve por lá. Um deles, apesar de ser um locador muito importante para o espaço, com 20 anos de cadastro e milhares de filmes já alugados, afirmou que não podia, por questões religiosas, ter o seu nome divulgado na matéria. Mesmo assim, ele não conseguiu deixar de falar sobre a sua relação e o carinho que tem pelo lugar.
Por ter um acesso muito restrito ao espaço virtual, são os recursos analógicos que propiciam que ele tenha uma conexão com o mundo. Nessa gana de conhecer mais culturas, línguas e lugares, ele leva quase uma dezena de filmes para casa a cada visita ao espaço — e como Seu Álvaro já sabe os seus gostos, é o próprio quem seleciona o lote para o cliente. E quase sempre as escolhas são certeiras. Sem a locadora, essa jornada de descobertas através da sétima arte vai ficar abalada.
Já o professor de teatro Daniel Fraga, que é cliente há mais de 30 anos da locadora — desde o seu primeiro endereço, na Rua Felizardo, paralela com a atual sede, que fica na Rua Itaboraí, 550 — diz que segue locando porque o streaming não consegue oferecer a relação que uma visita à locadora tem, com as dicas do Seu Álvaro.
— Ele sabe o meu gosto e isso não tem algoritmo que consiga fazer. A Netflix me oferece filmes que eu nunca vou assistir e isso não acontece aqui. É muito diferente poder conversar com alguém que já assistiu, que conhece as tuas preferências e possa te oferecer algo personalizado — garante Fraga.
Para o professor de teatro, sem a E o Vídeo Levou, a única alternativa que vai sobrar é se render às plataformas de streaming e tentar buscar dicas em páginas nas redes sociais. Porém, ele tenta amenizar a separação e guardar um pedacinho da história que construiu no local comprando alguns títulos:
— É um jeito de levar um pouco da locadora para casa. Não tem como não ficar melancólico, chateado com o término dos papos que a gente tinha. O Charles e o Álvaro indicavam filmes, e a gente brincava de quem ia acertar mais os meus gostos. Considero eles meus amigos.
E, de fato, durante as quase duas horas em que reportagem ficou na loja, Fraga se fez presente, escolhendo filmes, falando com a reportagem, mas, principalmente, encostado no balcão, conversando com os atendentes do local e dando muitas risadas com as histórias do passado — que ele ajudava a contar, pois tem todas na ponta da língua. Coisa de amigo.
— Alguns clientes nossos passam aqui na frente, entram, ficam horas batendo papo e vão embora, nem pegam nada, vêm só pela conversa. A gente aprende muito com eles e eles com a gente. É uma troca — enfatiza Seu Álvaro.
Um dos clientes, ao visitar o prédio e descobrir que a locadora iria fechar, segundo os atendentes do local, "ficou catatônico" e precisou sair porta afora para respirar e fumar um cigarro até se acalmar. Outro, que havia se mudado para Brasília, pediu para que o proprietário da locadora escolhesse 10 filmes e mandasse para ele do jeito que estavam na prateleira, com lacre e tudo. Ele, que nem aparelho para rodar mídia física tinha mais, queria a lembrança, um pedaço da história do espaço que tanto lhe fez feliz em outros tempos.
Saindo de cena
A E o Vídeo Levou teve tempos áureos. Quando ela abriu as suas portas, em 1989, o mercado de home video estava começando a se profissionalizar em Porto Alegre. Os irmãos Bertani logo acertaram o foco no gosto do público e as locações dispararam. A sede atual da locadora foi construída especificamente para abrigar o empreendimento. Foram anos de estudo para que o prédio se tornasse o que é hoje — até as prateleiras onde os DVD's estão abrigados foram projetadas por meses para criar uma experiência única aos clientes.
Essa dedicação toda e a visão de transformar o espaço em um centro de entretenimento, que recebeu, ao longo dos anos, jogos de videogame, biblioteca de cinema e, até mesmo, uma pista de autorama profissional, fez com que o local se tornasse popular, um ponto de encontro de uma geração e chegando a locar, em seu auge, 17 mil filmes em um mês — inclusive, promoções televisionadas pela RBS TV aconteceram no local, tamanha a relevância da locadora para a cultura da cidade. Com a internet se popularizando, juntamente com a pirataria e as plataformas de streaming, os blockbusters foram perdendo espaço nos pacotes dos clientes, uma vez que eram fáceis de serem encontrados online. Porém, Seu Álvaro, um amante do cinema mais "cult", havia preparado o terreno.
Com muitos títulos mais independentes, o baque das transformações tecnológicas não pegou tão forte a locadora, que seguia sendo frequentada por cinéfilos amantes do chamado "cinema de arte". Eles garantiam ainda boas locações. Nos últimos anos, a venda de filmes se tornou o carro-chefe do empreendimento e, de acordo com o proprietário, seria possível seguir com elas "ad aeternum", mas com a saída da Disney do mercado da mídia física — e, com ela, títulos da Marvel, da Pixar, de Star Wars e da Fox —, assim como as vendas diretas ao consumidor nos sites das distribuidoras, a clientela foi ficando cada vez mais escassa. Foi decidido, então, em janeiro de 2021, que seria a hora de fechar, definitivamente.
— Sobrevivemos à pirataria, à internet, ao streaming e até a pandemia, mas sem produto, não tem como continuar — frisa Seu Álvaro.
Para o gerente Charles Schumacher, que, entre idas e vindas, já está há 30 anos relacionado profissionalmente com a locadora, toda a sua formação se deu na loja e a sua história se funde com o local — ele relembra que até nas festas em que ia, ele era chamado como "o cara da locadora". E isso nunca foi um problema, pelo contrário, sempre foi motivo de orgulho. Afinal, a loja foi seu case nos trabalhos da faculdade, propulsora de relacionamentos, fonte de estudos e, principalmente, o local em que encontrou o Seu Álvaro.
— O Álvaro, com o passar dos anos, foi meu patrão, meu amigo, meu irmão, meu pai. Foi tudo — diz o funcionário que, no próximo empreendimento, será sócio de seu até então chefe. — E não tenho tristeza com o fechamento da loja, temos que tocar a nossa vida e ela está meio que travando isso. O que vai fazer falta são as pessoas que a gente conheceu.
E ele complementa:
— Apesar disso, tem que ser dito que não é apenas uma locadora que está fechando, é uma época que está chegando ao fim, um estilo de vida que está acabando — define.
Seu Álvaro finaliza:
— Por enquanto, estamos lidando bem com o fechamento, porque era algo que a gente já vinha pensando há muito tempo, mas, provavelmente, no primeiro dia em que a gente acordar e não tivermos que vir para a loja, vai pesar, vamos sentir. Tenho certeza.