O ucraniano Leonid Cvirkun, 85 anos, era apenas uma criança quando a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) devastou a Europa. Com menos de 10 anos de idade, precisou fugir de Donetsk, na Ucrânia, onde vivia. Na época, o país ainda pertencia à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Testemunhou bombardeios, mortes e escapou por pouco do pior. Foi obrigado pelos alemães a prestar trabalho escravo, junto dos demais familiares, em território nazista. Passou fome e viveu incertezas.
Com o final do conflito, veio de navio para o Brasil em 1948 e se instalou com os pais e uma irmã em Canoas. Atualmente, mora na zona norte de Porto Alegre. Casou com a ucraniana Ewhenia (vinda em situação parecida do continente europeu e já falecida) e teve duas filhas – Swetlana e Ana Maria.
Naturalizado brasileiro, diz não estar surpreso com a guerra atual. E recorda cenas tristes da infância, como ver durante a noite o céu avermelhado perto da cidade alemã de Hamburgo, em decorrência dos intensos bombardeios dos aliados na Segunda Guerra. Confira trechos da entrevista:
Como o senhor avalia a invasão russa à Ucrânia?
Leonid Cvirkun - Como descendente de ucranianos, carrego essa carga há muitos anos. Não há nada de novo, e a história russa é baseada nisso. Sempre invade a terra e se apodera das coisas dos outros. Nós, ucranianos, passamos trabalho e tivemos de abandonar nossas terras justamente por causa das atitudes russas.
O senhor imaginou que testemunharia algo assim em seu país tantas décadas depois do fim da Segunda Guerra?
Imaginei sim. Essas invasões, para os ucranianos que acompanham a história, não são nenhuma novidade.
O senhor chegou a ver muitas mortes durante a Segunda Guerra?
Vi pessoas mortas, e os bombardeios eram muito comuns. Também passei fome. Meu pai contava que uma vez queria ir embora de um lugar onde estávamos abrigados na Ucrânia. Precisou arrastar a gente para fora. Pouco depois, descobrimos que o local tinha sido destruído por um bombardeio.
Como ocorreu a fuga do senhor e de sua família de Donetsk durante a Segunda Guerra?
Não houve decisão da família por fugir. Foram coisas da guerra. Os alemães apareceram lá para nos “ajudar” (faz tom irônico) e levaram as pessoas à Alemanha para trabalharem como escravos. Acabamos em solo alemão, não apenas nós, mas milhares de estrangeiros de outros países pequenos e grandes. Todas aquelas pessoas prestavam serviços na Alemanha.
Vi pessoas mortas, e os bombardeios eram muito comuns. Também passei fome
LEONID CVIRKUN
Ucraniano naturalizado brasileiro
Com o fim da Segunda Guerra, os aliados começaram a organizar a situação. Criaram comitês com diversos países, em que as pessoas podiam voltar para seus lugares de origem e não ficarem sendo exploradas. Só que aconteceu o seguinte: nem todos que pertenciam à União Soviética quiseram voltar porque sabiam que a coisa era braba lá. Foi o que ocorreu com a minha família. Os representantes dos países livres e democráticos foram buscar a gente. Um cônsul brasileiro apareceu na cidade onde estávamos, em Hannover, na Alemanha. Lá ficamos em um campo de refugiados ucranianos, com mais de 10 mil pessoas, esperando por algum convite. Muitos não queriam voltar para a sua origem porque sabiam que seria cadeia ou trabalhar de graça. Então era esperar algum convite de outro país e embarcar nos navios.
Vocês foram direto para Hannover ou passaram por outras cidades alemãs antes?
Fomos primeiro trabalhar em uma olaria que fazia tijolos perto do Rio Elba. O céu ficava vermelho durante a noite devido aos bombardeios dos aliados. Era uma região perto de Hamburgo. Com o final da guerra, fomos para Hannover.
O que mais marcou o senhor durante o período da Segunda Guerra?
Só aconteciam coisas ruins na Ucrânia. Todo mundo diz que os alemães invadiram nosso país. Na realidade, quem entrou primeiro foram os italianos. Quando iniciou a guerra, para as crianças brincarem, era bom. Porque não havia ninguém nas ruas. O governo soviético começou a convocar os cidadãos para irem à linha de frente defender a pátria. Tinha um irmão menor (Viktor) que estava doente em Donetsk. Nós estávamos perto do aeroporto militar. Os aviões começaram a ensaiar para a guerra e davam rasantes. Meu irmão, em um desses exercícios da aviação, estremeceu e ficou com mais problemas de saúde.
Meu pai foi convocado para lutar, o que deixou minha mãe desesperada, pois estava com o filho doente e o marido convocado. Os militares deram uns dias de folga para ela cuidar do filho e, nesse espaço de tempo, meu irmão morreu. Meu pai não tinha mais desculpa para não ir e embarcou no trem para defender a pátria com milhares de outras pessoas
LEONID CVIRKUN
Ucraniano naturalizado brasileiro
Meu pai foi convocado para lutar, o que deixou minha mãe desesperada, pois estava com o filho doente e o marido convocado. Fomos juntos no quartel para explicar a situação. As pessoas diziam para a minha mãe que o filho doente não sobreviveria. Os militares deram uns dias de folga para ela cuidar do filho e, nesse espaço de tempo, meu irmão morreu. Meu pai não tinha mais desculpa para não ir e embarcou no trem para defender a pátria com milhares de outras pessoas. Todos sem nenhuma preparação, apenas com a roupa do corpo e sem armamento nenhum. Era uma choradeira e desespero terríveis. Os homens embarcavam enquanto as mulheres e crianças choravam.
Na manhã seguinte, bem cedo, enxerguei meu pai voltando, mas minha mãe não acreditou, dizendo que ele havia morrido. Quando ela viu, era o meu pai mesmo. Os alemães tinham interrompido as estradas de ferro. Quando o trem parou, cada um que estava nos vagões em direção ao combate escapou como pôde. Foi o que ocorreu com o meu pai. Antes de os alemães e os soviéticos entrarem na Ucrânia, a terra não tinha donos. Em uma ocasião, perto da região onde estávamos no território ucraniano, havia um cemitério e muitas árvores. Lembro que o local estava cheio de refugiados, até que os alemães invadiram. Então apareceram os patriotas de novo. Um belo dia, veio uma bomba. Era soviética e tivemos de fugir outra vez. Isso foi algo que marcou meu coração.
E o que aconteceu com a casa de sua família na Ucrânia?
A casa não era nossa em Donetsk. Quando deu para ir embora, partimos. Depois da guerra, meus pais não fizeram questão de voltar.
A viagem de navio saiu da Alemanha em direção ao Rio de Janeiro?
Fomos para a Ilha das Flores (localizada na Baía de Guanabara, em frente ao município de São Gonçalo), onde havia um posto de chegada para os estrangeiros encaminharem a documentação. Lá havia um grande refeitório. Na entrada, davam uma maçã para cada pessoa. Uma senhora, morena e gorda, encantou-se comigo. Me colocou para distribuir as maçãs aos refugiados. Fiquei de “chefe” e escolhia as meninas mais bonitas para dar as melhores maçãs (risos). Meus pais escolheram como destino o Rio Grande do Sul. O motivo era que alguns ucranianos conheciam um pouco da geografia brasileira e achavam que, como havia descendentes de alemães e italianos na Região Sul, o clima seria bom para nós.
Como foi chegar criança ao Brasil e se adaptar à língua portuguesa?
Foi brabo e custei para aprender. Fui para um colégio onde tinha um professor alemão muito querido que tentou ajudar, mas não deu certo. Nas folgas, eu e outros colegas ucranianos nos juntávamos para contar histórias. Os mais velhos se gabavam que estavam trabalhando, e aquilo me doía. O tempo passou até que arranjei um serviço de ajudante de mecânico, que era inclusive um homem russo. Antes disso, ainda precisei cuidar de minha irmã (chamada Lida) quando meus pais saíam para trabalhar.
Vocês ficaram muito tempo na Ilha das Flores ou logo vieram para o Rio Grande do Sul?
Ficamos exatamente cem dias na Ilha das Flores. Não podíamos sair pelo Rio de Janeiro, até porque havia custos. Fomos de navio para o Sul e paramos rapidamente em Santa Catarina. Depois desembarcamos no Cais de Porto Alegre, mas não tinha nada nem ninguém nos esperando. Arrumaram um lugar para ficarmos em um grande depósito, onde a comida do refeitório era guardada no próprio porto. Permanecemos nesse local por alguns dias. Logo apareceram alguns ucranianos para nos ajudar. Em Niterói (bairro de Canoas), havia um frigorífico e o diretor era alemão. Começou a aceitar bastante gente refugiada porque as pessoas passaram pela Alemanha e sabiam falar o idioma. E no frigorífico davam uma casinha para a gente morar. Então, todos queriam ir para o Brasil.
Para os ucranianos, diria para defenderem a terra
LEONID CVIRKUN
Ucraniano naturalizado brasileiro
Como o senhor conheceu sua falecida esposa?
A conheci na igreja de nossa comunidade em Canoas.
Os ucranianos demonstram muita resistência no atual conflito. O senhor esperava essa força?
Pelo que conheço do povo, esperava. Sabia que não entregariam o país de graça.
Donetsk foi reconhecida como separatista pelo presidente russo Vladimir Putin. A própria cidade se autoproclama República Popular de Donetsk. Qual o sentimento do senhor?
Estive na Ucrânia e em diversos pontos do país em 2001, mas não fui a Donetsk. Não sei por qual motivo não quis ir, mas acho que é por causa desse ajuntamento de pessoas de várias outras partes na cidade.
O senhor considera o presidente Putin um tirano nos moldes de Hitler ou Mussolini, por exemplo?
Preciso me basear em alguma coisa para dizer o que penso. Ele já foi espião da KGB (serviço secreto soviético) e não estava pregando coisas boas para a juventude (diz em tom irônico).
Se o senhor tivesse possibilidade de dizer alguma coisa para o exército invasor russo, o que seria?
É difícil. A pessoa precisa pensar em algo para falar. Mas, para os ucranianos, diria para defenderem a terra.