O conflito entre Rússia e Ucrânia ocorre a mais de 10 mil quilômetros de distância de Porto Alegre, mas, apesar do significativo distanciamento geográfico, os descendentes dos países eslavos que vivem no Rio Grande do Sul demonstram preocupação com os efeitos da guerra. A aposentada Maria Kohut, 80 anos, nasceu em Lviv, no oeste ucraniano, e veio para o Brasil com apenas sete anos. Naturalizada brasileira, ela mora em Porto Alegre.
— É uma sensação muito triste. Já chorei bastante pela manhã. Vim com meu pai depois da Segunda Guerra Mundial e chegamos ao Brasil em 1948 — compartilha Maria Kohut.
A aposentada conta que esteve em seu país natal em 2017 para conhecer os demais familiares e sempre manteve correspondência com eles. Na quarta-feira (23), ainda conversou com uma prima.
— A Ucrânia não tem como se defender e sempre foi dominada pela Rússia antes de conseguir a independência. Os russos nunca se conformaram por perderem a Ucrânia, que é muito rica em tudo. Meus familiares que vivem no país disseram que estão esperançosos, mas com receio e medo — relata desde a praia de Mariluz, no Litoral Norte, onde passa o veraneio.
Maria Kohut foi casada com um ucraniano que veio com apenas 14 anos para o Brasil. Ela tenta transmitir a cultura do país do Leste Europeu para os descendentes da família.
— Passei adiante os nossos costumes e o que aprendi — afirma, salientando que o Paraná é uma das regiões do Brasil mais povoadas por ucranianos e descendentes.
A amiga Swetlana Cvirkun Urbanskyy, 62, mora em Canoas e também descende de ucranianos. Conforme relata, o pai veio de Donetsk fugindo da Segunda Guerra Mundial.
Estamos soterrados por essa notícia do conflito. Cresci com o meu pai, que veio da Ucrânia e ainda é vivo, contando sobre sua fuga da Segunda Guerra Mundial
SWETLANA CVIRKUN URBANSKYY
Moradora de Canoas descendente de ucranianos
— Estamos soterrados por essa notícia do conflito. Cresci com o meu pai, que veio da Ucrânia e ainda é vivo, contando sobre sua fuga da Segunda Guerra Mundial. Depois, os ucranianos conquistaram a independência e houve períodos difíceis, como em 2014 (quando a Rússia invadiu partes do território do país), e agora isso — cita.
A história da fuga de seu pai, Leonid, hoje com 85 anos, tem passagens dramáticas. Na época uma criança com apenas 10 anos, Leonid e outros parentes fugiram e se refugiaram em diversos lugares, como em escolas. Uma vez, saíram de uma instituição de ensino pouco antes de ser bombardeada. Vieram para o Brasil em uma viagem de navio que durou mais de quatro meses.
Chegaram na Ilha das Flores, no Rio de Janeiro, para depois rumarem para Canoas. Na cidade da Região Metropolitana, a família refugiada conseguiu emprego em um frigorífico por se adaptar com facilidade ao clima e às temperaturas baixas da câmara fria. Outros parentes, depois, optaram por viver nos Estados Unidos. Atualmente, a descendente tenta manter a tradição na comida, em danças e na religião ortodoxa.
Na avaliação de Lana, como é conhecida, os russos jamais aceitaram a independência da Ucrânia e sempre estiveram de olho nas riquezas do país.
— A Ucrânia é muito rica em recursos naturais. E com os ucranianos estabelecendo vínculos com outros países e a União Europeia, isso mexeu com o presidente Vladimir Putin. Infelizmente, aconteceu o que estava previsto, e tenho muito medo de que agora acabem com o país — receia.
A tristeza se estende para outros descendentes desses povos. A chef Cristina Georgiyevna Boiko, 39, criou há um ano, na capital gaúcha, o delivery Matrioska Comida Eslava, especializado em refeições russas e ucranianas.
Nosso coração sangra porque é uma briga de irmãos
CRISTINA GEORGIYEVNA BOIKO
Chef de cozinha
— Nosso coração sangra porque é uma briga de irmãos. A Rússia sempre deixou a Ucrânia como refém, e aquele, costumeiramente, foi um território de guerra. A Ucrânia não está podendo ter atitudes independentes. Além disso, a Rússia não procura mais recursos naturais no próprio país e trata de buscá-los em território ucraniano — avalia a chef.
Ela explica que o avô nasceu em Kiev, na Ucrânia, e a avó em Orlovskaya Oblast, na Rússia.
— Me considero brasileira descendente de ucranianos e russos. Sou totalmente contra o conflito. Minha avó perdeu toda a família na guerra e tinha medo de procurar os parentes por causa das perseguições de Josef Stalin (antigo líder soviético). E meu avô precisou até trocar de nome para fugir. Essa perseguição fez com que nunca encontrássemos nossos parentes russos e ucranianos — lamenta ela, que, além de compartilhar com os clientes a culinária dos dois países, participou do antigo grupo folclórico ucraniano Orel (águia, em ucraniano).
Há tristeza também do outro lado. Descendentes de russos veem uma guerra fratricida ocorrendo no Leste Europeu.
— É extremamente triste porque tenho muitos amigos russos e ucranianos. Minha família inteira mora na Rússia — diz Elena Jaeger, diretora do Instituto Cultural Russo.
A Paróquia Ortodoxa Ucraniana Santíssima Trindade de Canoas realizou uma postagem em suas redes sociais, na manhã desta quinta-feira (24), em solidariedade ao povo ucraniano. A mensagem dizia: “Reze pela Ucrânia”. O local é frequentado por descendentes daquele país.
— Estamos bastante apreensivos com tudo o que está acontecendo na Ucrânia. A situação é bastante delicada. Minha esposa é da Ucrânia e está há oito anos no Brasil. Os pais dela permanecem lá. Estamos em um momento de tensão muito grande. Não sabemos o que vai acontecer, uma vez que as tropas inimigas já estão próximas dos familiares da minha esposa — diz o padre ortodoxo da Santíssima Trindade, Gregório Filakoski, que atende uma vez por mês os frequentadores da paróquia de Canoas.