Com emergência declarada e distribuição de reservatórios, a prefeitura de Porto Alegre começou a atacar o problema crônico da falta de água no Morro da Cruz, na zona leste. O desabastecimento só deverá ser resolvido daqui a três ou quatro anos, como disse o prefeito Sebastião Melo, mas esse tipo de situação não chega a ser uma novidade, e também acontece em outras cidades.
Com a população crescendo e ocupando os locais mais altos dos centros urbanos, o desafio para fazer a água chegar nesses pontos elevados aumenta na mesma proporção. Essa é uma parte do amplo conjunto de problemas que transforma o desabastecimento do Morro da Cruz em uma “situação gravíssima”, como o próprio prefeito reconheceu na terça-feira (15). A soma de redes clandestinas, aumento populacional, ocupações irregulares em áreas mais altas, ausência de abastecimento público em alguns pontos e falta de ajustes na fiação elétrica, entre outros, potencializou a crise na região.
O Sindicato dos Engenheiros do Rio Grande do Sul (Senge RS), que desenvolve trabalho voluntário por meio do braço social Senge Solidário no Morro da Cruz, foi estimulado pela comunidade local para auxiliar no combate ao problema da falta de água.
— Os moradores chegaram até nós e pediram ajuda para conseguir caixas d’água. Entramos em contato com a prefeitura e fomos convidados para ajudar com ações voluntárias. Fazemos trabalho de avaliação estrutural para as famílias — esclarece o presidente do sindicato, Cezar Henrique Ferreira.
A realidade é vivenciada desde o começo do ano por habitantes da região. Em janeiro, quando o calor ampliava o desconforto das pessoas, o colapso atingiu diversos bairros e moradores da Zona Leste. No último dia 10, foi decretada situação de emergência no Partenon, Vila São José, Vila João Pessoa, Coronel Aparício Borges e Santo Antônio. Mais de 120 mil pessoas vivem nesses cinco bairros da Capital.
— O pessoal estava com sede e não tinha água para beber — recorda o diretor de Negociações Coletivas Adjunto do Senge, João Leal Vivian, que acompanhou a vistoria de diversos órgãos ao Morro da Cruz no sábado (12).
A comunidade relata que o problema é antigo, e o poder público sabe que serão necessários investimentos robustos a médio e longo prazos. A rede não consegue dar conta da demanda de água, especialmente nas partes mais altas do Morro da Cruz. O último reservatório está na chamada cota 200, o que significa que se localiza a 200 metros de altura. Há pessoas vivendo a 230 e 240 metros, ou seja, acima da linha de distribuição de água.
O que é Jornalismo de Soluções, presente nesta reportagem?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
— Estamos falando de saneamento. É preciso levar água e tratar o esgoto. Para nós, saneamento é engenharia e leva ao desenvolvimento — aponta o mandatário do sindicato.
A instalação de reservatórios públicos na região, para o abastecimento de outros menores, e a construção de redes públicas, com hidrômetros, são soluções apontadas pelo Senge para combater a adversidade atual no Morro da Cruz. A região Altos da Escola é um exemplo de lugar onde a rede deverá ser refeita para atender à demanda da população.
Medidas emergenciais podem resolver a questão por ora, mas não representam algo definitivo. O professor de saneamento Antônio Benetti, do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pontua que o problema é muito complexo e que deveria ter ocorrido um planejamento anterior por parte da prefeitura. Além disso, como comenta, o desabastecimento na região se tornou algo recorrente durante o verão.
— Uma solução óbvia seria a prefeitura comprar água e dar para a população ter o que beber. Se houver vertente no morro, a água poderia ser captada, desinfetada com pastilhas de hipoclorito de sódio e distribuída. Apesar da estiagem, quando chovesse, a água deveria ser captada e desinfetada. São algumas soluções que poderiam ser avaliadas — observa o especialista.
Se houver vertente no morro, a água poderia ser captada, desinfetada com pastilhas de hipoclorito de sódio e distribuída
ANTÔNIO BENETTI
Professor de saneamento do IPH da UFRGS
O professor da UFRGS ressalta que é bastante comum haver vertentes de água em morros, mas não confirma se é o caso específico do Morro da Cruz. O certo é que experiências bem-sucedidas de outros lugares precisam ser olhadas com atenção pelos agentes públicos, reforça.
— Em Santa Cruz do Sul, havia uma área em torno de 5 mil lotes de terra, localizada em uma região alta da cidade, onde se projetou o crescimento demográfico. Uma parceria entre o setor privado e o público decidiu perfurar um poço para evitar problemas de falta de água no futuro — relata o engenheiro ambiental Marcelo Kronbauer, do Departamento de Engenharias, Arquitetura e Computação da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc).
O docente dá dicas que podem auxiliar na complicada situação na região do Morro da Cruz:
— Construir reservatórios é importante até para minimizar o problema da falta de água nos horários em que o consumo é maior. Também é necessário trabalhar com reservatórios coletivos, assim como os individuais. Os moradores precisam de incentivo para ter a própria caixa d’água.
O engenheiro ambiental cita a questão social envolvida. Segundo ele, os responsáveis pela fiscalização devem cadastrar os moradores irregulares.
— Não dá para ignorar que a água representa a primeira condição de dignidade para qualquer moradia — reflete.
Construir reservatórios é importante até para minimizar o problema da falta de água nos horários em que o consumo é maior
MARCELO KRONBAUER
Engenheiro ambiental do Departamento de Engenharias, Arquitetura e Computação da Unisc
O reservatório Vila dos Sargentos, localizado na Rua Soldado José da Silva, deve ampliar a reserva de água para a Zona Leste e melhorar o abastecimento dos bairros Partenon e Agronomia. A construção começou no ano passado e vai beneficiar cerca de 80 mil habitantes. Em fase final, a obra passa dos 90% de conclusão. A estimativa do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) é colocar em funcionamento o reservatório, que terá capacidade de armazenar 2 milhões de litros de água, até o final de abril.
O professor Marco Alésio Figueiredo Pereira, do Programa de Pós-Graduação em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale, também sugere medidas para enfrentar a falta de água.
— A curto prazo, uma forma de remediar a questão para o abastecimento de água potável seria o uso de caminhões-pipa. A implementação de cisternas seria uma forma viável de abastecimento para usos menos nobres, pois a água coletada por esse mecanismo pode ser usada para lavar louça, tomar banho, dar descarga no banheiro, entre outros. Após tratamento adequado, pode ser usada para o consumo humano e dos animais — ilustra o educador.
O professor chama atenção para outra situação, como o risco de acontecer algum deslizamento em áreas de ocupação irregular. É um drama vivido nos últimos dias por habitantes de Petrópolis, no Rio de Janeiro, por exemplo.
— Uma solução adequada, mas que teria um custo elevado e demandaria um tempo maior para ser resolvida, seria a retirada das pessoas desses locais inadequados, pois, provavelmente, são Áreas de Preservação Permanente e podem estar sujeitas a desastres naturais, como os fatídicos episódios que acontecem cada vez com mais frequência no país — alerta, citando o caso de Petrópolis, após as fortes chuvas de terça-feira (15).
Uma solução adequada, mas que teria um custo elevado e demandaria um tempo maior para ser resolvida, seria a retirada das pessoas desses locais inadequados, pois, provavelmente, são Áreas de Preservação Permanente e podem estar sujeitas a desastres naturais
MARCO ALÉSIO FIGUEIREDO PEREIRA
Professor da Pós-Graduação da Universidade Feevale
A Prefeitura de Porto Alegre encerrou o cadastramento das famílias no Morro da Cruz. Foram realizados 599 cadastros. Desse total, 221 residências têm caixas d’água, enquanto 378 não possuem e manifestaram o interesse de receber. O número total de moradores atingidos pela falta d’água (sem caixas) é de 1.279 pessoas. E a média de moradores sem reservatórios (quantidade por residência) é de 3,38 pessoas. Na sexta-feira (18), a instalação de caixas d'água para famílias da região foi iniciada, com as primeiras quatro unidades.
O professor Alexandre Swarowsky, que atua no Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), sugere que um reservatório na parte mais alta do morro seria uma boa medida. Ele também considera que cada casa poderia ter um sistema de coleta de água da chuva.
— Em relação ao problema da falta de água no Morro da Cruz, pelo que tem sido relatado, o crescimento populacional nessas regiões mais altas influencia de forma negativa o bombeamento para essas áreas. Provavelmente, um reservatório na parte alta seria uma solução. A principal solução seria um reservatório intermediário que abastecesse especificamente essa região.
Conforme o professor, a questão das ocupações clandestinas também pesa, porque as redes irregulares cobram muita carga e acabam danificando o abastecimento. Outra crítica é em relação às ausências de redes públicas de água e de rede elétrica.
Exemplos de fora da capital gaúcha
Em Gramado e Canela, alguns dos principais pontos turísticos do Estado, o Natal dos últimos anos foi marcado por ansiedade e indignação para os moradores de alguns bairros. Tudo motivado pela falta de água.
Foram 9 mil imóveis atingidos pela interrupção do abastecimento no período do feriado de Ano-Novo de 2019. Por 11 horas e 10 minutos de 1º de janeiro daquele ano, 41% dos consumidores de Gramado conviveram com o problema da falta d’água, considerando que o município inteiro somava 22 mil imóveis.
A Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) promoveu diversas obras, como perfuração de poços, ampliação e melhoramento dos reservatórios, para que as adversidades começassem a ficar no passado.
Há poucas semanas, os moradores de um condomínio foram contemplados com um novo reservatório para abastecimento de água, com capacidade para armazenar 50 mil litros e a 10 metros de altura em comparação com a rua. A altura aumenta a pressão da água e potencializa o abastecimento.
Há dois anos, não muito diferente do que acontece atualmente, uma estiagem baixou os níveis dos mananciais. Dois Irmãos e Morro Reuter, municípios que ficam em pontos geograficamente mais altos, enfrentaram oscilações no abastecimento de água. Para enfrentar a repetição do problema, está em andamento, por parte da Corsan, um projeto-piloto chamado Smart Water. Por meio de inovação e tecnologia, a iniciativa visa melhorar a distribuição de água. Veja algumas medidas:
- Previsão de implantação de poço 4.0 e ETA 4.0. A ETA em Dois Irmãos foi desenvolvida com módulos automatizados para leitura e dosagem de produtos reduzindo até 50% da mão de obra. Em Morro Reuter, será implantado poço 4.0 com leitura do nível de água e dosagem de produtos químicos necessários feitas de forma automatizada
- Pesquisa sobre vazamento e fraude
- Padronização das ligações com hidrômetro em cada residência
- Instalação de macromedidores com telemetria
- Instalação de dois reservatórios de 50 metros cúbicos cada em Linha Gorgen e outro na Rua Dois Irmãos para auxiliar na reserva de água para manter o abastecimento
- Troca dos hidrômetros por modelo ultrassônico, garantindo maior precisão na leitura
- Implantação da plataforma H2HOJE, que conta com game, portal, material didático para professores, canal no YouTube e desenhos animados
- Mapa temático automático no GeoPortal, que mostra vazamentos, sua localização e mapeamento do serviço realizado para conserto
- Recadastramento de todos os usuários de Morro Reuter.
Em São Paulo, o nível dos reservatórios está baixo nos últimos anos. Por isso, o governo paulista anunciou um programa de perfuração de poços artesianos tubulares que deve atender 2,1 milhões de pessoas no Estado. Serão perfurados 138 poços tubulares. Em Ribeirão Preto, por exemplo, a cidade é totalmente abastecida por 120 poços profundos.