Uma ação inédita tem feito quem anda pelo centro de Porto Alegre reduzir o passo e olhar para cima. O Festival Arte Salva convidou quatro artistas a pintar empenas cegas (fachadas laterais sem janelas) e dar um pouco mais de cor à cidade.
Três deles já começaram as obras gigantes. O trabalho mais adiantado é o de Kelvin Koubik, 32 anos. Tirando pequenos reparos pendentes e a camada de verniz, ele e o seu assistente já praticamente acabaram a obra de cerca de 25 metros de altura em um prédio na esquina da Siqueira Campos com a Rua Uruguai.
Artista visual formado pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do RS (UFRGS), o porto-alegrense quis levar a natureza para essa área cheia de cimento do Centro Histórico. Lembrando-se da fauna que resiste ao longo do Arroio Dilúvio, decidiu pintar uma garça junto a algumas folhagens.
Único artista de fora do Estado, Tito Ferrara, 35 anos, começou na sexta-feira passada (12) o seu trabalho, que, estima, vai demandar mais de 150 latas de spray e oito galões de 18 litros de tinta acrílica. Desenhou uma mulher cercada por duas onças. Junto do desenho, escreverá as palavras “Amor, dor e tempo”, o nome da obra.
— Eu quis fazer a representação da força em vários sentidos. Até na postura da mulher, ela tem uma postura forte — comenta Tito.
O paulista, que já assinou trabalhos até em Nova York, está fazendo sua estreia na capital gaúcha. Pelo que já viu, especialmente no Centro, a cidade tem muito potencial para a arte urbana. Ele mesmo já identificou uma série de empenas cinzas que parecem pedir por pintura.
Tito cita a Lei Cidade Limpa de São Paulo, que extinguiu, há 15 anos, os painéis gigantes de publicidade que geravam poluição visual na capital paulista e acabou dando mais espaço para grafites executados por artistas nacionais e internacionais. Ele destaca que esse tipo intervenção acaba democratizando o acesso a manifestações artísticas na cidade, de forma gratuita:
— Eu espero que esse seja o primeiro festival de muitos aqui em Porto Alegre, pois vejo isso como uma democratização da arte. É botar arte pra gente que não necessariamente tem costume de ir a museus ou galerias, desde quem está andando de carro até pedestre, à senhora descendo do ônibus. A arte urbana tem esse poder.
Com patrocínio das Tintas Renner by PPG e Dado Bier, esta é a segunda edição do projeto — em 2020, em decorrência da pandemia, ocorreu em formato online e promoveu a pintura de um mural no 4º Distrito. Neste ano, serão mais de 1,2 mil metros quadrados de área pintada em quatro ruas do Centro Histórico. Em torno de 50 profissionais estão envolvidos no projeto, entre artistas, assistentes, produtores, técnicos, engenheiros e segurança, entre outros.
A curadoria dos artistas é assinada por Vinicius Amorim, criador do projeto. Ele destaca o poder da arte pública no desenvolvimento da sociedade e do indivíduo.
— Visa resgatar a sensação de pertencimento da comunidade, deixando para trás a sensação de que as vias públicas são meras passagens, mas sim espaço de arte, reflexão, beleza e contemplação — afirma o gestor cultural.
Coincidentemente, nas próximas semanas, deve começar outro projeto grandioso, executado pelo Laboratório de Políticas Públicas e Sociais (Lappus) com o apoio do poder público e o patrocínio de empresas, pessoas físicas e instituições. A empena do prédio de 19 andares do Daer, na Avenida Borges de Medeiros, vai virar um mural de 65 metros de altura pintado pela suíça Mona Caron e pelo paulista Mauro Neri.
Kelvin Koubik destaca que o movimento do muralismo, ou seja, das pinturas em grande escala, já ocorre no cenário nacional e internacional “há um bom tempo” — cita festivais como o Cura, em Belo Horizonte, e o Concreto, em Fortaleza.
— Porto Alegre está chegando depois, mas fico feliz que esteja chegando. Vai abrir portas para outros artistas e despertar olhares, de marcas e empresas, que podem dar patrocínio, e do poder público e da própria sociedade, que podem ver que a gente não precisa ser bombardeado só com propaganda. Esse tipo de arte sempre vai trazer um pouco de leveza para a cidade ou despertar questionamentos — diz Kelvin.
Onde está sendo feita cada obra:
Rua Praça Parobé, 77, Centro Histórico - Estacionamento Parobé
Nesse prédio ficará o mural do paulistano Tito Ferrara. Seu trabalho é uma mistura de retratos e histórias contadas por meio de escritas e tags misturadas em camadas. Já assinou trabalhos em Nova York, e este ano realizará uma imersão pelo Japão.
Para sua estreia em Porto Alegre, está pintando um desenho de uma mulher e duas onças em uma empena de 25 metros de largura por 15 de altura.
Rua Uruguai, 35, Centro Histórico - Predial Bier Ullmann
A obra, vista da Rua Siqueira Campos, já está em fase final pelas mãos do artista visual Kelvin Koubik. Ele atua como muralista, produzindo obras em grande formato em diversos espaços públicos e privados, e já venceu dois prêmios Açorianos de Artes Plásticas (2013 e 2017). Desde 2014, seu ateliê se localiza no Vila Flores, um centro cultural no distrito criativo da capital gaúcha.
O painel de aproximadamente 25 metros de altura tem por objetivo levar a natureza para dentro da cidade.
Rua Caldas Junior, 20, Centro Histórico - Edifício Despachantes Aduaneiros
Bruno Schilling é formado em Design com ênfase em Design Gráfico e desde 2012 participa de exposições e projetos em Porto Alegre, São Paulo, Novo Hamburgo, São Leopoldo, Campo Bom e Ivoti, construindo painéis e murais.
Sua obra no Centro Histórico está em fase inicial de execução. O melhor ângulo para enxergá-la é na junção da Caldas Junior com a Siqueira Campos. Ela tem duas faces de 27 por quatro metros.
Segundo o autor, a obra é uma tentativa de inserir uma estrutura viva respirando no concreto da cidade.
Avenida Borges de Medeiros, 601, Centro Histórico - Edifício Tabajara
A responsável pelo mural neste ponto é Pati Rigon, uma artista natural de Cachoeira do Sul formada em Design pela UFRGS e pela Politécnica de Turim, na Itália. Trabalha com pinturas a óleo, ilustrações, grafites, performances, tatuagens e também é modelo e militante transintersexo. Ela deve iniciar a obra nos próximos dia, e a melhor vista será de quem está descendo a escadaria da Borges de Medeiros.
Seu mural também trará elementos botânicos.
— Talvez, inconscientemente ou não, os artistas trouxeram ao centro o que nele falta, o que nele é escasso, o que nele foi destruído. Meu mural será isso, essa reconexão com a natureza, com a delicadeza, com a calma e com algum toque de transgressão, pois os tempos são sombrios e o momento pede — diz ela.
Rua Souza Reis, 132, bairro São João - Ocupação Mirabal
O trabalho conduzido por Ane Schütz será um pouco diferente. Vai ser uma oficina com mulheres do projeto Mirabal, que ministrará em dezembro. Juntas, vão pintar o muro da instituição, uma obra de aproximadamente 13 por 2,8 metros.
Ane é designer, ilustradora, diretora de arte, desenhista, muralista, “combinadora de cores, sujadora de pincéis, gastadora de marcadores, enfim, um pouco de tudo que envolva artes visuais”. Produz um trabalho focado especialmente na figura feminina e influenciado pela cultura pop, com uso de cores vibrantes, texturas, linhas orgânicas e formas abstratas pra construir suas composições.