Por Flávio Kiefer
Professor, mestre em arquitetura pelo PROPAR/UFRGS
Muito se tem falado do futuro das cidades. Já há consenso que viveremos cada vez mais em um mundo dominado pela inteligência artificial e que a tecnologia vai dominar praticamente todas as esferas das nossas vidas, da mobilidade à forma de residir, conviver, exercitar o corpo e a mente, festejar, trabalhar etc. A pandemia só fez acelerar as expectativas quanto ao que está por vir.
Apesar de a introdução de novas tecnologias se dar com velocidade impressionante, é importante lembrar que a configuração urbana trabalha com outra dimensão de tempo. Ela é lenta, medida em décadas, principalmente porque as maiores mudanças são resultado de atitudes culturais, comportamentais, de inter-relacionamento, de entendimento filosófico e espiritual da vida e da organização política da sociedade. Para o bem ou para o mal, o passado persiste em sua inércia enquanto se busca alinhar a cidade a novos desígnios. A correnteza atual leva em direção à cidade aberta, socialmente diversa e integrada, onde compartilhamento é força motriz do trabalhar, do morar e de tudo o mais. Ian Gehl, a partir da sua experiência em Copenhagen (Dinamarca), tornou-se o principal porta voz da nova corrente publicando livros como Life Between Buildings (não traduzido para o português), em 1971, e Urbanismo Feito para Pessoas, em 2010. Em 2016, proferiu palestra no Fronteiras do Pensamento. Apesar disso, na contramão desse futuro, para citarmos um exemplo importante, seguimos, principalmente no Brasil, construindo os anacrônicos condomínios fechados.
Ainda construímos, em alguma medida, a cidade gestada intelectualmente no início do século 20, ideias que começaram a ganhar materialidade hegemônica com a reconstrução do pós-Segunda Guerra. De concepção fordista, voltada para a grandeza da máquina, do carro e da velocidade sonhada pelos futuristas italianos e planejada milimetricamente por Le Corbusier e Lúcio Costa. Os condomínios fechados brasileiros são uma transposição dos subúrbios americanos para dentro de nossas cidades, assim como os shoppings, que de rodoviários lá viraram cidadelas urbanas aqui.
O que vem lentamente tomando o lugar do paradigma da cidade modernista – ícone de uma sociedade utilitarista e reducionista –, já era vivo nos anos 1960. Livros e artigos pipocavam alertando para a destruição de valores permanentes da arquitetura e da cidade. Movimentos sociais, como o Maio 68, alertavam para a organização autoritária e a uniformização massiva da sociedade, pressuposto do planejamento modernista-fordista; a crise do petróleo de 1973 abria caminho para a ecologia e um novo lugar para a humanidade no seio da natureza; Edgar Morin, em 1973, lembrava: “A dependência/independência ecológica do homem se encontra em dois graus sobrepostos e interdependentes, que são o do ecossistema social e o do ecossistema natural”; o Vale do Silício botava de cabeça para baixo a ideia do gigantismo como solução para os problemas da vida no planeta inventando os microcomputadores. A consciência do aquecimento da atmosfera terrestre só veio a efervescer a necessidade de uma profunda mudança no modo de habitarmos a cidade.
Esse é o consenso quanto ao futuro: as cidades inevitavelmente vão ter que se adaptar às pessoas, a sua pluralidade e diversidade, ao ritmo pedestre do seu caminhar e a sua maneira de desfrutar o corpo e a mente. A interpessoalidade vai formar as comunidades de vizinhança, aproximando a moradia do trabalho, do comércio, do lazer e do prazer da caminhada e do reencontro com o ambiente natural.
A transformação pela qual passarão nossas cidades não será pequena. O desafio é imenso! Ainda mais por que deverá ser feito de maneira inversa à construção anterior: não destruindo, mas reconstruindo, costurando, integrando, juntando partes desconexas.
No semestre passado, na disciplina de Ateliê de Projetos Especiais do Curso de Arquitetura da PUCRS, ministrada pelos professores Cristiana Bersano, José Carlos Marques e eu, lançamos um desafio aos alunos. A tarefa era de derrubarem os muros que isolam os condomínios fechados do tecido da cidade. E não só os muros literais, mas os que isolam essas porções do território dos valores que vão constituir a cidade do futuro.
Vai ser possível recosturar o tecido urbano quando a sociedade o demandar. E a sociedade só vai demandar se puder sonhar, aspirar uma vida melhor do que a que temos hoje.
O resultado foi surpreendente. A identificação e a busca dos territórios para que cada grupo desenvolvesse seu trabalho trouxe a desagradável surpresa de mostrar a extensão de partes da cidade em que não existe cidade, mas apenas condomínios justapostos a condomínios. Entre eles, muros, isolando-os, ou a terra de ninguém, que são as vias de acesso rodoviário. Nada que possa ser chamado de rua.
Escolhidos os territórios, os grupos soltaram a imaginação, usando a liberdade que a disciplina lhes pede, para reconstruir conceitualmente esses guetos monofuncionais. Ignorando a legislação atual, que precisa ser revolucionada, inseriram atividades comerciais e de lazer abertas a todos, habitação com diversidade social, entre outros elementos importantes para a comunidade, sem deixar de manter a estrutura lá existente. As ruas internas foram ligadas à circulação pública, parques lindeiros, integrados, e os antigos limites desapareceram. Alguns grupos trabalharam em dois ou mais condomínios justapostos, outros introduziram hotéis, prédios comerciais, coworking, clubes esportivos e sociais e outras soluções criativas para transformar o diverso em universo local.
Confesso que eu mesmo tinha dúvidas das reais possibilidades de êxito dessa tarefa. Mas é esse o papel da universidade: prospectar, arriscar e imaginar um futuro condizente com as melhores aspirações da contemporaneidade. Sim, vai ser possível recosturar o tecido urbano quando a sociedade o demandar. E a sociedade só vai demandar se puder sonhar, aspirar uma vida melhor do que a que temos hoje. Quando chegar a hora, nossos futuros arquitetos já mostraram que vão estar preparados, pois estão se instrumentalizando para isso desde agora.