O coronavírus já circulava no Brasil quando, na segunda semana de março de 2020, os últimos blocos de Carnaval arrastavam foliões pelas ruas de Porto Alegre. Sem um protocolo definido e diante da ausência de casos na Capital, a prefeitura manteve a programação que levou mais de 20 grupos a se apresentarem em diversos pontos da cidade.
Teria sido apenas mais um Carnaval, não fosse pela ressaca: três dias depois do fim, a cidade foi paralisada por medidas que eram a antítese da clássica folia brasileira. O distanciamento social que perdura em razão da disseminação desenfreada da doença chegou a 2021 e varreu o Carnaval de rua do calendário de eventos neste ano.
A decisão anunciada pela prefeitura no fim de janeiro pode ter decepcionado foliões, mas não chegou a surpreender integrantes dos blocos de Carnaval. Ainda que não tenha impedido a saída dos blocos que foram às ruas em março de 2020, a pandemia impôs dilemas à folia de rua.
– A natureza do bloco é aglomeração. A gente cogitou cancelar, mas como não havia casos em Porto Alegre, mantivemos. Foi uma decisão difícil, mas acertada. Se a gente não saísse, não ia sair mais – recorda Ian Angeli, músico e produtor da Turucutá.
O grupo, que completa 13 anos no mês que vem, foi dos últimos a se apresentar, em 14 de março. A saída, que levou milhares à Rua Washington Luiz, no Centro, trouxe novidades que tendem a ser incorporadas em definitivo quando a festa for retomada, como dispensadores de álcool em gel nos banheiros químicos.
Também aquele foi o último dia que o bloco, que reúne cerca de 70 músicos para o Carnaval, reuniu-se de forma física. Inicialmente previstas para durarem 15 dias, as férias se estenderam por tempo indeterminado, e as oficinas de percussão foram canceladas. Já sem expectativas de sair em 2021, no fim do ano, o grupo lançou um clipe da música Nosso Ilê, palavra em iroubá que faz referência à casa. Era uma antecipação do Carnaval possível, dentro do território de cada um.
O distanciamento também atingiu em cheio o Bloco Maria do Bairro, um dos responsáveis pela retomada do Carnaval de rua em Porto Alegre. Desde a saída do bloco, em 8 de março, os cerca de 20 integrantes da diretoria não se encontram pessoalmente.
A crise sanitária foi um banho de água fria no grupo, conhecido pelas marchinhas e fantasias divertidas que lembram o Carnaval à moda antiga. Em conversas pelo WhatsApp e em videochamadas, cogitaram criar um samba crítico à atuação do governo da pandemia, mas, diante do agravamento da situação, optaram pelo silêncio.
– Uma das funções do Carnaval de rua tem sido discutir a sociedade, trazer questões importantes. Mas a realidade se mostrou bem mais crítica. Me parece necessário que a gente sinta falta para entender como as coisas são importantes – diz Zeca Brito, um dos fundadores do bloco, homenageado em uma exposição na Casa de Cultura Mario Quintana.
Fenômeno do Carnaval de rua, com músicas próprias e um séquito de foliões engajados, o Bloco da Laje foi por outro caminho. Apesar do distanciamento, o grupo manteve-se em atividade, criando playlists, realizando lives e festas virtuais, e produzindo um clipe. Cada um no seu quadrado.
– A gente não tem se encontrado e tem a preocupação de não incentivar as pessoas a saírem. Mas praticamente não paramos. Até para gerar assunto, para gente se ver, se comunicar, trocar, mesmo que cada um na sua casa – conta Chico de Los Santos, produtor e “brincante” da Laje, que planeja oficinas virtuais para os próximos meses.
Também a distância, o grupo será a atração principal de um evento virtual promovido pela Casa de Cultura Mario Quintana. Vinculadas à exposição Aos Carnavais que Virão, que ocorre no quarto andar e pode ser visitada mediante agendamento, uma série de lives a partir da semana que vem levará um pouco do clima de Carnaval para dentro da casa dos porto-alegrenses. Os blocos Turucutá, Maria do Bairro, Bloco da Diversidade e Não Mexe Comigo Que Eu Não Ando Só serão os primeiros a participar, entre os dias 17 e 20 de fevereiro.
O Bloco da Laje entra em cena dia 28, um domingo, a partir das 18h. Diferentemente da catarse que costuma marcar as apresentações do grupo, a live deve trazer uma performance mais intimista, em formato de sarau. Cerca de 10 integrantes devem participar da atividade remota.
À espera da vacina
Se a vontade de espalhar purpurina pelo corpo e sair cantando pela rua sob sol a pino é grande, a data para a retomada dos blocos é incerta. O entendimento é de que só será possível voltar em segurança quando todos forem vacinados, o que, no ritmo atual, poderia colocar em xeque também o evento de 2022.
A prefeitura descarta um evento fora de época em 2021, e diz que pretende se reunir com os blocos mais para frente, para discutir o próximo ano. Nesta sexta-feira (12), o poder público disse, ainda, que deve reforçar a fiscalização nos bairros da região central nos próximos dias para evitar aglomerações de qualquer natureza.
A suspensão do Carnaval de rua vem na esteira de anos difíceis para os blocos, que viveram conflitos com moradores e tiveram de se adaptar a formatos determinados pelo poder público para poder circular. Dificilmente, no entanto, o hiato irá ameaçar a festa, que na última década virou parte do calendário de eventos da cidade.
Na avaliação de quem entende do assunto, inclusive, a abstinência carnavalesca tem tudo para fortalecer a folia quando a pandemia passar. No livro Metrópole à beira-mar, o jornalista Ruy Castro lembra a catarse coletiva que tomou conta do Rio de Janeiro no carnaval de 1919, meses depois do fim da gripe espanhola:
“Poucas semanas antes, estávamos a milímetros da morte. Agora, já eram vésperas de 1919. Quem sobreviveu não perderia por nada aquele carnaval”, diz um trecho do livro, que destaca o carnaval de 1919 como “o maior da história” da capital carioca.
Historiadora e pesquisadora do Carnaval de Porto Alegre, Helena Cattani acredita que a festa pós-coronavírus tende a seguir pelo mesmo caminho, intensificado pela “necessidade de interação” de quem pôde se resguardar durante a pandemia. Ela observa, ainda, que a retomada será uma oportunidade de reconciliar os blocos com parte da população e com o poder público.
– A essência do Carnaval e da cultura popular é a resistência e a resiliência. Creio que essa pode ser uma oportunidade de os blocos pensarem qual é o seu papel na cultura, nas manifestações culturais. Podem parar, refletir e pensar como fazer um carnaval harmonioso. Acho que vai voltar muito mais forte.
Como acompanhar as lives dos blocos
- 17/2 (quarta-feira, às 21h): música e conversa com o Turucutá Batucada Coletiva
- 18/2 (quinta-feira, às 21h): conversa com representante do bloco Não mexe comigo que eu não ando só
- 19/2 (sexta-feira, às 21h): conversa com o Bloco da Diversidade
- 20/2 (sábado, às 17h): música e conversa com o Bloco Maria do Bairro
- 28/2 (domingo, às 18h): live com o Bloco da Laje
Onde: pelo Instagram da Casa de Cultura Mario Quintana (@ccmarioquintana)