Já não há mais nem o cheiro da cevada ali, mas Gambrinus segue guardando uma das portas gigantes de madeira na Avenida Cristóvão Colombo. A figura mítica que ensinou aos germanos o segredo da fabricação da cerveja — ou o rei considerado o protetor dos cervejeiros, em outra versão da história — decora um dos prédios da Cervejaria Bopp Irmãos, que viraria Continental e, por fim, Brahma. Em outubro, vai fazer 110 anos da inauguração do primeiro bloco do conjunto arquitetônico considerado um dos mais emblemáticos de Porto Alegre, que abriga hoje o Shopping Total.
— É uma espécie de palácio da indústria, que mostra a importância da Porto Alegre industrial do início do século 20. Esse prédio celebrava a pujança do empreendedorismo, especialmente esse de origem germânica — explica o secretário de Cultura de Porto Alegre, o historiador Gunter Axt.
A fachada de estilo eclético é toda adornada com estátuas — estima-se que a cervejaria investiu cerca de 10% do valor da obra em decoração. Dentro dos prédios também há segredos que teletransportam os visitantes ao século passado. Durante a reforma para a implantação do Shopping Total, inaugurado em 2003, funcionários encontraram um emaranhado de túneis interligados.
Eles deram origem a uma série de lendas. Uns diziam que seria uma rota de fuga, construída na época da Primeira Guerra Mundial, que conduziria os diretores em segurança até as margens do Guaíba. Também tem quem acreditasse que os túneis se estendiam por baixo da Avenida Cristóvão Colombo até as casas dos proprietários da fábrica para esconder ações ou “intenções inconfessáveis”.
Mas pesquisa feita por Axt com a arquiteta Lídia Fabrício há alguns anos, a pedido do shopping, indica que os túneis tinham um fim bem prático. Eles seriam usados para a condução do vapor produzido na Casa de Caldeiras até a fábrica. Havia também alguns que ligavam as caldeiras à chaminé, que eliminava a fumaça para o exterior.
Um restaurante nos túneis
É possível conhecer parte desses túneis hoje. Inaugurado em 2014, o restaurante italiano Cantina Famiglia Facin restaurou um espaço que fazia parte da casa de caldeiras, onde funcionavam antigamente os fornos da cervejaria. Fica logo abaixo da icônica chaminé de 86 metros de tijolo à vista — logo na entrada do restaurante, à esquerda, os visitantes veem um amplo vão sob o chaminé.
Para chegar no estabelecimento, os clientes passam por túneis. E é possível ainda jantar ao lado de um dos antigos fornos.
A proprietária do restaurante, Nicole Pelissioli Facin, relata que quando entrou pela primeira vez no local o espaço estava quase em ruínas, com chão batido, escuro, úmido e cheio de areia. Mas ela enxergou de cara o potencial de transformá-lo em um restaurante. Quase não conseguia acreditar que tinha “toda essa história escondida embaixo do shopping”.
— Nosso intuito sempre foi preservar o local, para poder contar o que foi feito aqui. E é muito gratificante quando as pessoas entram aqui e dizem que se sentem em outro lugar, não parece estar na cidade — diz.
No salão onde, de 2016 até no ano passado, havia um café colonial, ainda existe uma das caldeiras em cobre usadas para a fabricação de cerveja. A grande porta de madeira com barris esculpidos também é uma relíquia remanescente da cervejaria. O café colonial fechou durante a pandemia e não há indicação sobre qual negócio pode ocupar o espaço.
As origens
A história da cervejaria começa no século 19, como mostra a pesquisa feita por Axt e Lidia. Filho de imigrantes alemães, Carlos Bopp montou na Capital uma pequena fábrica de vidros e latarias de estanho. Ali ele teria confeccionado uma caldeira, pouco mais que um tacho, a pedido de um cliente que nunca mais voltou para buscar a encomenda. Para não perder o investimento, sua esposa, Maria Luíza, teria convencido ele a aproveitar o utensílio para começar a fabricação de cerveja.
Em 1881, ele iniciou sua cervejaria, inicialmente na Rua Voluntários da Pátria. O negócio cresceu a tal ponto que mandou construir a fábrica na Cristóvão Colombo. Mas Carlos não conseguiu ver a inauguração nem do primeiro dos quatro prédios, no dia 27 de outubro de 1911. Faleceu em janeiro daquele ano, deixando para os filhos o negócio.
A cervejaria foi projetada por Theodor Wiederspahn, o mais importante arquiteto da imigração alemã radicado em Porto Alegre, responsável por prédios como o do Museu de Arte do RS (Margs), do Banco da Província (atual Santander Cultural) e do Hotel Magestic (Casa de Cultura Mario Quintana). A construção foi feita pelo Escriptório de Engenharia Rudolph Ahrons, também filho de imigrante alemão, que estudou engenharia em Berlim e se tornou o construtor mais requisitado de Porto Alegre no início do século 20. Evidenciando o sonho de empresários da indústria, banqueiros e comerciantes, anúncio do jornal A Federação resumia: “Todo o positivista constrói com Rudolph Ahrons”.
As estátuas de cunho mitológico, os ornamentos e os relevos também levavam assinatura de um renomado atelier, de João Vicente Friederichs. Ele contratava artistas vindos de Alemanha, Itália, Espanha e Áustria para fazer as estátuas. Acredita-se que muitas delas façam referência a marcas e rótulos de cervejas, ao exemplo do Mercúrio (deus da mitologia romana) e do elefante centralizado no ponto mais alto da fachada.
— O poder do industrial, do comerciante, se refletia nas fachadas — diz Lídia.
Em 1999, foram tombados pelo município os prédios de fabricação, fermentação, caldeiras e escritórios, além da chaminé.
Linha do tempo
1911: é inaugurado o primeiro prédio do complexo da cervejaria Bopp Irmãos na Rua Cristóvão Colombo
1924: ocorre a fusão das cervejarias Bopp Irmãos, Ritter e Becker-Sassen, com o nome de Cervejaria Continental.
1946: a Continental é adquirida pela Brahma, que dominava o mercado nacional
1998: a Brahma é transferida para Viamão
1999: os prédios são tombados pelo município
2003: é inaugurado o Shopping Total, utilizando os prédios históricos e também edificações novas.