Cenas como a da semana que passou, em que carros ficaram submersos nos bairros Farrapos e Humaitá, seriam mais improváveis se as obras previstas como compensação pelo impacto da construção da Arena do Grêmio, inaugurada em dezembro de 2012, já tivessem sido efetuadas.
O início delas está novamente indefinido desde 7 de abril, quando o Ministério Público rejeitou a proposta de acordo oferecida pelo município, Grêmio e Arena Porto-Alegrense – esta, ré na Justiça pela não execução das obras. O acordo, além da sinalização positiva para o começo dos trabalhos, propiciaria a liberação do habite-se do condomínio Liberdade 2, ao lado do estádio. O Liberdade 1 já foi liberado.
A dificuldade do município em esclarecer simplesmente quais são as obras em discussão e o custo de cada uma delas é um reflexo do tamanho do imbróglio. Na prefeitura, a Procuradoria-Geral do Município (PGM) responde pelo tema, mas apenas pela parte processual. A Secretaria Municipal de Infraestrutura e Mobilidade (Smim) não fala sobre as obras antes delas efetivamente entrarem em execução. Já a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (Smurb), embora lide com os problemas de alagamento na região, evita falar oficialmente sobre o assunto por não ter responsabilidade sobre as obras.
A resposta veio por meio do Escritório de Licenciamento da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e da Sustentabilidade (Smams), onde reside um documento utilizado no momento em que as obras estiveram mais perto de início, em abril de 2019.
Até ali, foram sendo abandonadas obras que ainda tinham no horizonte recursos federais para a Copa do Mundo de 2014. O enxugamento ocorreu tanto de parte da Arena quanto nas consequentes contrapartidas ao município. Uma das ideias abandonadas na prancheta, por exemplo, era um prolongamento da Rua Voluntários da Pátria, contornando o estádio e encontrando a avenida A.J. Renner.
– A redução das contrapartidas decorreu da diminuição do porte do empreendimento. O projeto original previa, por exemplo, um centro comercial que não se concretizou. Isso, obviamente, tem um reflexo sobre as obrigações necessárias para mitigar esse impacto – argumenta Cândida Silveira Saibert, procuradora-geral adjunta de Domínio Público, Urbanismo e Meio Ambiente na PGM.
Estabeleceu-se, então, nove obras imprescindíveis (ver infográfico, abaixo), orçadas em R$ 39,8 milhões e divididas em seis etapas que se prolongariam por quatro anos e 10 meses. Isso após a prefeitura realizar desapropriações nas áreas. Ou seja, um trabalho que mesmo seguindo o cronograma demoraria mais de de cinco anos e sequer começou.
Os trabalhos começariam na rotatória entre as avenidas A.J.Renner, Padre Leopoldo Brentano e rua José Pedro Boéssio e continuariam pelo 1,8 quilômetro da A.J. Renner em direção à rua Dona Teodora, concomitante à limpeza e desassoreamento da rede coletora pluvial. Por fim, seriam feitas as melhorias na Padre Leopoldo Brentano e na José Pedro Boéssio e seriam construídas as últimas contrapartidas: uma nova estação de esgoto e um batalhão da PM. O investimento também seria escalonado, começando com R$ 1,2 milhão no primeiro ano e chegando a R$ 14,5 milhões nos últimos 10 meses.
O plano começou a ir por água abaixo no segundo semestre de 2019, com a negativa da Caixa Federal para o financiamento das obras, que seriam executadas pela construtora Karagounis, subsidiária da empreiteira OAS e responsável pelos condomínios ao lado da Arena. Segundo o MP, teria pesado o fato de que as obras seriam bancadas por um fundo da Caixa que recebe recursos do FGTS, e sua execução desvirtuaria a finalidade deste.
– A meu ver a Caixa Federal fez uma interpretação equivocada de que aquelas obras beneficiariam o estádio e o clube, e não a cidade. Foi o mais perto que se chegou das obras depois de uma ampla discussão para a melhor formatação – conta o promotor Ricardo Schinestsck, secretário-executivo do Mediar-MP, núcleo de mediação do MP encarregado do imbróglio desde 2017.
De acordo com Schinestsck, o esperado era que os agentes envolvidos chegassem a uma nova proposta nos moldes mais semelhantes possíveis às bases estabelecidas em 2019, com nova fonte de recursos. Mas, no início desse ano, o MP se surpreendeu com uma formatação de negócio bem diferente. O MP fundamentou a rejeição em três pontos principais.
Primeiramente, em vez da Karagounis, uma nova empresa seria fundada especialmente para tocar as obras. As garantias, que antes eram imóveis e terrenos, passaram a ser rendas do Grêmio: do quadro social e da loja do clube. Por fim, as partes envolvidas propunham garantias no limite do orçado para as obras acrescido de 10% (R$ 43 milhões), mas não garantiam a execução das obras se elas ultrapassassem o valor. Assim, caso se revelassem mais caras, a responsabilidade por finalizá-las poderia recair aos cofres públicos.
Resumindo, o argumento do MP é de que não havia garantias reais. A empresa que executaria as obras não tinha lastro patrimonial para ser responsabilizada por eventual descumprimento, e as garantias oferecidas pelo Grêmio eram incertas e insuficientes. Na longa resposta elaborada pelo MP justificando a rejeição do acordo, a instituição exemplificou a fragilidade da proposta citando a pandemia, que, de acordo com o próprio Grêmio, poderia causar prejuízos no seu caixa na ordem de R$ 25 milhões.
– A impressão que ficamos foi que a execução das obras, nessa proposta, foi formatada mais para facilitar a negociação entre o Grêmio e a Arena para a compra da gestão do estádio do que para realizar os trabalhos de fato. E não é a função do Ministério Público priorizar essa negociação entre entes privados. Tenho a esperança que, voltando às bases de 2019, consigamos avançar com rapidez – declara Schinestsck.
Problema de drenagem na região é histórico
A mudança do Grêmio para o Humaitá ajudou a dar visibilidade ao problema, mas a dificuldade de drenagem da região vem de décadas e começa pela própria localização do terreno. Os bairros Farrapos e Humaitá se desenvolveram sobre a sub-bacia hidrográfica do Humaitá, uma das 27 que alimentam o Guaíba, com cerca de 5,4 quilômetros quadrados. É um solo naturalmente propenso a alagamentos. Uma demonstração pode ser vista perto dali, no Parque Mascarenhas de Morais, onde uma área de 18,3 hectares engloba um imenso banhado capaz de abrigar um ninhal de milhares de garças.
De acordo com o vereador e ex-secretário de Serviços Urbanos, Ramiro Rosário (PSDB), a chuva que caiu entre a terça-feira e quarta-feira passada – a maior para um dia de julho em mais de cem anos – teria causado ainda mais estragos se tivesse encontrado na região a estrutura de drenagem de 2017. Consertada após uma enchente em junho daquele ano.
– Naquela ocasião, das cinco bombas da casa de bombas da Rua Voluntários da Pátria, apenas uma e meia estavam funcionando. Toda a estrutura da região estava sucateada e foi um caos – recorda o ex-secretário.
Naquele ano, a reforma da Estação de Bombeamento de Águas Pluviais (Ebap nº 5), responsável por dar vazão a 10 mil litros de chuva por minuto em direção ao Guaíba e ao rio Gravataí, foi bancada por uma doação da Associação das Empresas dos Bairros Humaitá e Navegantes (AEHN). Os empresários da região desembolsaram R$ 100 mil para amenizar os alagamentos.
– Sem melhorar a mobilidade e a drenagem, essa região não tem como se desenvolver. E eu nem estou falando dos dias de jogos na Arena, mas do cotidiano mesmo. Embora a gente reconheça os esforços, é frustrante ver um problema crônico como esse não se resolver – opina Luiz Carlos Camargo, presidente da AEHN e há mais de 40 anos no bairro.
Embora a reforma e a limpeza constante das estruturas existentes tenham amenizado os alagamentos, a região convive com ao menos dois outros problemas nas estruturas. É sabido que algo imprevisto nas obras da Rodovia do Parque (BR-448) , dificultou o escoamento na região: possivelmente um de seus pilares danificou a rede. Outro entrave são as más condições da rede pluvial entre a casa de bombas da Voluntários e outra secudária, a Ebap Vila Farrapos, localizada na Rua Jayme Tolpolar a 500 metros da Avenida A.J. Renner. Assim, uma estação não consegue bombear água com rapidez em direção a outra mais potente.
Para o conserto, um edital está em elaboração com investimento previsto de R$ 2,4 milhões e tempo de execução de um ano. Já outras melhorias na região, de maior impacto, dependem que prefeitura, Grêmio, Arena Porto-Alegrense e Ministério Público voltem a se entender.
Procurados, Grêmio e Arena Porto-Alegrense não quiseram se manifestar nesta reportagem. A Karagounis preferiu que a Arena, se assim desejasse, se manifestasse sobre o assunto, mas declarou estar otimista de um acerto em breve. O município, por meio da PGM, declara que está atuando para que as medidas compensatórias previstas na aprovação do projeto sejam cumpridas e o impasse resolvido.