Nesta quarta-feira (22), completam-se 15 dias desde que o prefeito Nelson Marchezan decretou medidas mais duras de restrição à circulação e à atividade econômica em Porto Alegre para tentar frear o ritmo galopante de internações em UTIs — que, mesmo assim, cresceram 56% ao longo desse período.
O prefeito diz que ainda tenta ampliar o número de vagas para tratamento intensivo, apesar de dificuldades de pessoal e infraestrutura já manifestadas pelos hospitais, enquanto segue buscando um consenso entre dirigentes hospitalares, representantes empresariais e demais setores da sociedade para adotar um lockdown que, se cortar as linhas de transmissão do vírus, permitiria reiniciar a abertura da economia duas semanas depois.
Se não obtiver um consenso mínimo, o prefeito acredita que a cidade vai conviver “por um longo período” com as restrições atuais, que poderia chegar a mais "um ou dois meses". Acompanhe trechos da entrevista concedida por telefone a GaúchaZH.
O senhor afirmou que as semanas seguintes ao decreto que ampliou restrições na cidade seriam decisivas. Como analisa o que o ocorreu nesse período?
Continuamos aumentando a demanda por leitos de UTI. Temos uma projeção, considerando os últimos 15 dias, que aponta para uma situação que vai nos levar até o final deste mês a chegar a nossa terceira fase de 383 leitos (destinados à pandemia). Já ultrapassamos a primeira fase de 174 leitos pouco tempo atrás, já passamos pela segunda fase de 255 leitos, e os hospitais já tiveram de se superar para ampliar vagas e estamos chegando ao final do mês à terceira etapa do plano de contingência de 383 leitos com desconforto já elevado dentro dos hospitais. Neste mês, onde pedimos esse apoio (à diminuição de circulação), chegamos à primeira etapa, passamos pela segunda e vamos chegar à terceira. Já projetamos uma quarta etapa.
O que seria essa quarta etapa?
Seriam 500 leitos. Já demandamos os hospitais, porque, na verdade, o município contrata, ajuda a administrar, paga, faz a distribuição das pessoas, diz, “olha, o Instituto de Cardiologia não vai receber covid, vamos deslocar para lá as pessoas com problema no coração e liberar outros hospitais”. Mas os leitos dependem das estruturas hospitalares. Levei isso (proposta de chegar a 500 leitos) aos hospitais na reunião (da sexta-feira anterior, 17), quando perguntei se nos apoiariam no lockdown. Parte apoiou, parte não. Alguns entenderam que não tem como a gente criar leitos suficientes para segurar a pandemia. Nesta quarta (22) volto a me reunir com dirigentes de hospitais e representantes empresariais.
Diante desse cenário, é possível que saia uma nova decisão ou estratégia?
Para os hospitais, vou dizer que seguimos precisando ampliar mais os leitos. Para os empresários, vou dizer que precisamos diminuir a circulação sob pena de ficar por um longo período com restrições a atividades econômicas, e aqueles que funcionarem estarão cometendo ilegalidades. É mais fácil ter um grande acordo em que todos aceitam reduzir a circulação da cidade por duas semanas, e a gente tenta reiniciar algumas atividades ali adiante.
Se não tiver pactuação da sociedade para diminuir a circulação, vamos ficar pelo menos por um, dois meses com ambiente bem ruim do ponto de vista de restrição econômica
Apesar dos seus apelos, o nível de isolamento social segue baixo. Foram em vão?
Começamos com esses apelos primeiro pelos protocolos e questões pessoais, e acho que as pessoas entenderam, estão usando álcool gel, máscara, se tocam menos, mas verificamos também que a aceitação do isolamento foi muito maior em março do que agora. Não diminuímos a demanda por leitos porque os decretos não tiveram o reflexo na circulação que tiveram em março e abril. Como o objetivo dos decretos não é a atividade econômica, mas a circulação, a gente teve a demanda por leitos aumentando. Se não tiver pactuação da sociedade, principalmente dos hospitais, dos empresários e da imprensa, para poder diminuir a circulação, vamos ficar pelo menos por um, dois meses com ambiente bem ruim do ponto de vista de restrição econômica, de quem abrir levar multa e poder ser processado e, do ponto de vista dos hospitais, continuar crescendo a demanda e, em algum momento, talvez médicos intensivistas tenham de escolher quem vão atender, o que seria lamentável.
Como ocorreu inclusive na Europa.
E como vimos em Manaus, Belém, Recife e Fortaleza. A análise de uma pandemia se faz pelo número de óbitos que se teve a mais em relação ao ano anterior. Se pegar Manaus, teve 1,7 mil óbitos por covid em um determinado período, mas um total de 3 mil óbitos a mais do que no ano passado. Isso interessa porque, se tu não morreu de covid, morreu de câncer, do coração, mas porque faltou hospital. Sempre que me perguntavam quantas vidas nós salvamos, eu dizia que não sabia. Hoje, posso dizer que, com nossas medidas desde março, salvamos 3 mil vidas. Pegamos municípios com mais de 1,5 milhão de habitantes, que fizeram ou não fizeram restrições, e calculamos. Porto Alegre teve 300 mortes a menos (em relação a 2019). Somos a segunda capital em número de UTIs SUS. Falta de vagas não é o problema, é que as pessoas circulam, e o vírus circula.
Os apelos em favor de um lockdown, até o momento sem o apoio de parte da sociedade, não trouxeram desgaste?
São os ossos do ofício. O objetivo maior é salvar vidas. Por mais que a gente, durante 14 horas por dia, se reúna, converse, o objetivo é que as pessoas não morram sem atendimento e afetar o mínimo a economia. Temos tido sucesso em salvar vida. Nenhum porto-alegrense morreu sem atendimento. O custo para a gente acelerar a contaminação e a liberação são mortes. É um custo que nós não vamos pagar.
Estamos mais próximos de um lockdown do que 15 dias atrás? Não poderia ser decretado mesmo sem todo o apoio desejado?
Nosso objetivo não é o lockdown ou a restrição econômica, é diminuir a circulação das pessoas para diminuir a circulação do vírus
Essa não é uma decisão individual. Tem de ser da cidade. Porque se até mesmo os decretos não estão sendo cumpridos e atendidos por uma parte da sociedade, sem apoio da imprensa, de manifestação explícita dos hospitais e das entidades empresariais, sem consolidar isso como uma decisão da cidade, não teria efeito. Nosso objetivo não é o lockdown ou a restrição econômica, é diminuir a circulação das pessoas para diminuir a circulação do vírus. É uma decisão que precisa estar apoiada. É uma alternativa que as diretorias dos hospitais deveriam considerar para evitar a sobrecarga, e me parece que as lideranças empresariais poderiam fazer uma análise dessa hipótese porque poderia dar um fôlego para pensarmos, em um prazo não tão longo, diminuir algumas restrições. Para a gente não ter a estrutura de saúde sendo demandada mais do que pode atender, assim como outras cidades brasileiras tiveram de aprender, para a gente não ter mortes sem atendimento, a gente vai precisar conviver com restrições por alguns meses. Nossas vidas não serão normalizadas em breve. Dentro desse cenário, manifestações de lideranças precisam ser mais maduras ou realistas. Ou explicitamente dizerem: “aceito mortes, aceito que há vidas que valem menos do que outras”. Se não aceitarem essas frases, então as posições deles precisam ser mais maduras e conscientes.
O senhor pretende expor isso dessa forma a líderes empresariais da cidade?
Já expus de forma ainda mais objetiva do que estou expondo agora. Muito mais objetiva.