No recuo, ao lado da calçada, não há grama. O buraco de terra no chão é consequência do uso diário do espaço por um carioca radicado em Porto Alegre há mais de uma década, que tem nas ruas do bairro Camaquã a vitrine do seu trabalho: a fabricação e venda de pipas artesanais.
— O gaúcho chama de pandorga, mas eu faço a tradicional pipa do Rio, com rabiola de seda. A pandorga pode ser de pano, e não voa como a minha — compara Jorge dos Reis, 55 anos, enquanto entrelaça a linha em varetas de bambu.
Após perder o emprego de maçariqueiro industrial no Polo Petroquímico de Triunfo, na Região Carbonífera, "Carioca", como é conhecido na vizinhança, se mudou para a zona sul da Capital. No local, o metalúrgico se deparou com um grupo de crianças empinando o brinquedo, impulso para ele retomar a atividade ensinada pelo avô nos anos 1960, em Nova Iguaçú, na Baixada Fluminense.
— Vou mostrar como é uma pipa de verdade — provocou o flamenguista aos garotos, correndo para reunir madeira e papéis coloridos, cola e barbante.
Dez anos depois da cena nostálgica, as pipas passaram a ser parte da renda familiar, sua única contribuição para o sustento da casa, onde vive com a esposa e a filha adolescente. Carteira assinada, apenas a mulher ostenta.
Reforço na renda e terapia
A amada — mas não amadora — profissão virou uma terapia. Sentado em um tronco da altura de um banco, Jorge dispõe as finas madeiras em uma estrutura de seis lados — diferente do losango que a maioria das pessoas está acostumada a ver —, outra característica celebrada como tradicional de sua cidade natal.
Como se montasse a vela de uma embarcação, o artesão dobra a ponta da seda com cuidado, recortando as pequenas sobras com uma tesoura. Após espalhar uma generosa dose de cola branca, o corpo do objeto está pronto, restando apenas o adereço final.
— Aqui no Sul vocês chamam de rabo, mas lá no Rio é rabiola. É outra coisa nossa. A rabiola é importante, faz a pipa subir e dá o controle lá no ar — explica, enquanto dobra meia dúzia de tiras para pendurar na base do brinquedo.
Hoje em dia o pessoal sumiu da rua. Todo mundo com medo ou no celular. Não se brinca mais como antigamente.
JORGE DOS REIS
Vendedor de pipas
O artesanato é interrompido por uma brisa:
— Ó o ventinho. Tá chamando — anima-se.
Ao preço de R$ 20, o metalúrgico expõe suas criações em uma cerca ou penduradas em galhos de árvores da Rua Prof. Dr. João Pitta Pinheiro Filho. Sua presença já é parte da paisagem, segundo moradores do bairro.
— Ele está sempre aí, desde as 7h. Eu já comprei umas 10. Na real, comprei pro meu filho, mas quem mais usa sou eu — brinca o marinheiro Mauro Alves, 43 anos.
É esse o público que garante as vendas:
— Meu piá não sai pra rua para brincar assim. Eu tento levar, mas quem gosta sou eu — afirma o vendedor de cachorro-quente Adriano Peres, 34 anos.
Mais de 20 quilômetros a pé
Vitorioso contra Grêmio e Inter na Libertadores de 2019, o flamenguista provoca os rivais gaúchos após os jogos, com rasantes rubro-negros no céu. "Papamos os dois", vangloria-se.
Contudo, exercendo a política da boa vizinhança, se nega a dizer qual a estampa agrada mais: a colorada vermelha e branca ou a tricolor gremista.
— É tudo meio a meio — garante.
Aos fins de semana, suas coloridas obras de arte são expostas em parques ou na orla do Guaíba. A distância, ida e volta, é de cerca de 20 quilômetros, percorridos a pé de casa até o Centro Histórico. Com as parcas unidades vendidas, sobra pouco para as passagens de ônibus, dispensado para o trajeto.
Enquanto exibe seu talento em uma rápida montagem dos materiais — em menos de 10 minutos a pipa está pronta —, o carioca sonha.
— Queria mesmo era ter uma loja só com brinquedos antigos. Carrinho de lomba, peteca, bolita, perna de bambu... Hoje em dia o pessoal sumiu da rua. Todo mundo com medo ou no celular. Não se brinca mais como antigamente — lamenta, baixando novamente os olhos para o trabalho.