Convocados de surpresa para duas sessões extraordinárias nesta quinta (30) e sexta-feira (31) para apreciar um polêmico pacote de mobilidade urbana, os vereadores de Porto Alegre tentam decifrar a estratégia do prefeito Nelson Marchezan ao colocar os projetos em votação de supetão. A convocação foi feita pelo recém-empossado presidente da Câmara Municipal, Reginaldo Pujol (DEM), tão logo os projetos foram publicados em veículos de imprensa, no final da tarde de segunda-feira (27).
Boa parte dos vereadores vê na pressa de Marchezan uma forma de culpar a Câmara caso os projetos não sejam aprovados e o preço da passagem de ônibus aumente em 2020. A ex-presidente da Câmara, Monica Leal (PP), é um deles.
— Eu teria me negado a fazer essa convocação extraordinária dias antes do reinício do ano legislativo. Não me parece que ele (Marchezan) apresentaria esse festival de insanidades em questão de dias se ele tiver de fato a intenção de aprová-lo — opina.
Segundo o líder do governo, Mauro Pinheiro (Rede), o projeto vem sendo debatido há tempos nos gabinetes da prefeitura, mas decidiu-se pela apreciação de forma extraordinária para que o seu impacto tenha efeito no cálculo da passagem, tendo em vista o valor sugerido pelas empresas de ônibus. A tarifa de R$ 5,20 tornaria o ônibus urbano de Porto Alegre o mais caro entre as capitais brasileiras. Para a apreciação extraordinária, seria preciso um rito ainda mais ágil do que o regime de urgência, de até 45 dias.
— Vejo condições, sim, de aprovar os projetos de forma extraordinária. Talvez não exatamente como eles foram concebidos, mas aprimorando eles com emendas. De fato será curioso: eu quero ver partidos mobilizarem protestos contra o preço da passagem depois se agora eles se recusarem a discutir alternativas — observa Pinheiro.
Base deve comparecer à sessão
Tão logo foram convocados, vereadores de diferentes partidos consultaram uns aos outros sobre a possibilidade de a sessão não ter o quórum mínimo, de 19 presentes. Constataram que a base governista deverá, sim, comparecer em bom número à Câmara. Para alguns vereadores, isso sinaliza que o governo planeja aprovar alguns projetos e sacrificar outros, os chamados "bodes na sala". O projeto que reduz a presença de cobradores, por exemplo, encerrou 2018 sem entrar em votação e tem nova chance.
Outro projeto que ganha força é a taxação dos aplicativos. Em companhia de projetos heterodoxos como a cobrança de pedágio para ingressar no cidade, pode ser aprovado por ser mais razoável.
— Se for essa a estratégia, é uma pena. Porque queima projetos que têm um bom conceito por trás, de priorização do coletivo diante do automóvel, mas concebidos de forma esdrúxula, como esse pedágio para entrar em Porto Alegre. Já pensou se Canoas resolve nos cobrar para passar pela BR-116? — questiona Marcelo Sgarbossa (PT).
Se a intenção da votação às pressas era pegar desmobilizadas as categorias prejudicadas, os parlamentares afirmam que não funcionou. Todos eles se dizem soterrados de mensagens, sobretudo de motoristas de aplicativos, que devem tomar as galerias do plenário Otávio Rocha nesta quinta-feira.
Também ex-presidente da Câmara, Valter Nagelstein (MDB) acredita que o pacote pode não ir a votação por problemas regimentais. Na visão do emedebista, as medidas só poderiam estar na ordem do dia depois de ter pareceres jurídicos favoráveis. Só então a sessão extraordinária poderia ser convocada, para no mínimo 48 horas depois.
— Apresentar leis inconstitucionais como pedágio ou vale-transporte, que é de competência federal, sem qualquer parecer, me soa como outros projetos absurdos. São impossíveis de votar, mas a intenção do prefeito era criar um fato político. E conseguiu — opina Nagelstein.
Confira as cinco propostas
1. Tarifa pelo uso de sistema viário para aplicativos
Porto Alegre instituiria uma "tarifa de uso do sistema viário" para os aplicativos de transporte de passageiros. Empresas que optarem por rodar na Capital teriam de abrir os dados das suas corridas e pagariam R$ 0,28 de tarifa por quilômetro rodado.
De onde vem a inspiração: cidades como Curitiba, Fortaleza, Brasília e São Paulo já tributam os aplicativos de diferentes formas. A maior inspiração é a capital paulista, que aplica uma tarifa variável de R$ 0,10 a R$ 0,40 por quilômetro conforme o horário e o trânsito.
Impacto estimado na tarifa: menos R$ 0,70
Por que é polêmico: se a tarifa for repassada pelas empresas de aplicativo ao consumidor, as corridas ficarão mais caras.
A justificativa da prefeitura: seria justo taxar as empresas que estão ganhando dinheiro aos custos das vias da cidade, além de estarem gerando congestionamentos no trânsito. De quebra, tornaria mais justa a competição com o ônibus, tendo em vista que o preço das corridas curtas se aproxima do valor unitário da passagem.
2. Tarifa de congestionamento urbano para carros de fora
Na prática, é um pedágio para entrar em Porto Alegre. Veículos com placas de fora da Capital pagariam R$ 4,70 para ingressar na cidade. A tarifa vigoraria apenas em dias úteis e a cobrança seria automatizada: por meio de câmeras na entrada da cidade e a cobrança enviada para a residência dos motoristas, que se cadastrariam em um site. Carros não cadastrados correriam o risco de ser multados e/ou apreendidos.
Impacto estimado na tarifa: menos R$ 0,50
De onde vem a inspiração: a exceção de cidades turísticas, como Fernando de Noronha (PE), a medida é novidade no Brasil. A inspiração vem de cidades como Santiago, Londres e Roma, embora essas metrópoles costumem cobrar apenas pelo acesso a determinadas regiões, para coibir congestionamentos. Pela justificativa do projeto, o maior exemplo é Nova York, que em 2021 passará a cobrar US$ 10 pelo acesso de carros a determinadas regiões e, com o dinheiro, financiará o sistema de metrô, que passa por crise financeira.
Por que é polêmico: sobretudo porque onera quem trabalha em Porto Alegre e tem veículo emplacado em algum dos mais de 10 municípios da Região Metropolitana. Há outros prejudicados, como motoboys, veículos de carga e carros de locadoras de veículos – que são emplacados em outras cidades e podem, eventualmente, ter de pagar a taxa caso saiam e entrem na cidade.
A justificativa da prefeitura: a prefeitura calcula que 70 mil veículos de fora acessem a cidade diariamente, e acha justo que eles sejam onerados no valor que hoje corresponde a uma tarifa de transporte público para utilizar as vias de Porto Alegre. O município também acredita que isso pode ter o impacto positivo de estimular que as pessoas venham da Região Metropolitana usando transporte público e empresas a emplacarem seus veículos na cidade.
3. Taxa de mobilidade urbana em vez de vale-transporte
A mais heterodoxa e menos consolidada das propostas, a taxa de mobilidade urbana seria um valor fixo cobrado das empresas para cada um dos seus trabalhadores registrados com carteira assinada (celetistas). Esses trabalhadores deixariam de ganhar vale-transporte (VT) e de ter o benefício descontado dos seus vencimentos. Em vez dele, os empregados ganhariam um cartão de passe livre para circular no sistema de ônibus. Ainda não está definida de quanto seria essa taxa, mas a ideia é que ela seja significativamente menor do que o valor mensal que as empresas gastam em vale-transporte.
De onde vem a inspiração: a prefeitura não revelou nenhuma referência.
Impacto estimado na tarifa: como ainda não foi calculada a tarifa, o impacto é desconhecido. Mas a prefeitura estima que 550 mil celetistas trabalhem em Porto Alegre.
Por que é polêmico: hoje, as empresas só concedem vale-transporte aos empregados que assim desejarem. As empresas teriam da pagar a taxa de mobilidade a todos os seus funcionários, mesmo os que não utilizam o sistema, e não poderiam descontar o valor em folha. Não está claro como ficaria o vale-transporte de quem precisa vir para o trabalho de outro município.
A justificativa da prefeitura: nos cálculos do município, o contingente de empregados que recebem VT é significativamente maior do que os que não recebem. Portanto, as empresas não seriam de todo prejudicadas ao trocar o vale-transporte por uma taxa menor, mas para todos os funcionários. Além do passe livre, os empregados seriam beneficiados ao não ter mais o valor do VT descontado em folha. A ideia é que a medida também estimule outros trabalhadores a trocar o carro pelo ônibus, já que todos eles teriam passe livre.
4. Redução gradual dos cobradores
Já em tramitação na Câmara, a medida desobriga a presença de cobradores em casos específicos: diariamente, das 22h às 4h, em linhas com número reduzido de passageiros, em domingos e feriados e em dias de passe livre. Nas ocasiões em que não há cobrador, o pagamento da passagem só poderá ser feito pelo cartão TRI.
Impacto estimado na tarifa: menos R$ 0,05
Por que é polêmico: os rodoviários argumentam que a medida coloca em risco a segurança dos motoristas e os empregos de 3,6 mil cobradores.
A justificativa da prefeitura: o município argumenta que não haverá demissões. Os cobradores seriam capacitados para cinco outras funções: motorista, auxiliar administrativo, borracheiro, abastecedor ou fiscal. A prefeitura também cita longa lista de municípios que reduziram e/ou tornaram a presença de cobrador opcional nos últimos anos, como São Paulo, Rio e Belo Horizonte.
5. Fim da taxa de gestão da Câmara de Compensação Tarifária (CCT)
Hoje, 3% da tarifa de ônibus é destinada à gestão do sistema do transporte. Esse valor – que soma R$ 24 milhões anuais – deixaria de fazer parte do cálculo da passagem e passaria ser buscado junto ao Tesouro do município.
Impacto estimado na tarifa: menos R$ 0,15
Por que é polêmico: não há maiores divergências. Segundo a prefeitura, a taxa foi criada sobre uma tarifa menor e a partir de uma lógica em que o transporte público da cidade conseguia se viabilizar apenas com os seus passageiros. Com o tempo, o valor se tornou pesado na tarifa e injustificável. O problema será buscar os recursos de outra fonte.
A justificativa da prefeitura: O município argumenta que cobrar pela gestão do transporte dos próprios usuários do ônibus seria contraditório à lógica de todo o pacote, de que o transporte é um direito constitucional do cidadão como saúde ou educação, e o poder público deve assegurá-lo com a colaboração de todos os contribuintes.