Cedo da manhã de um sábado, tocou o telefone de Laércio Roca, que, àquela altura do ano, já atendia com naturalidade pelo nome do seu alter-ego:
– Papai Noel, primeiramente o senhor me desculpe por ter ligado. Não queriam me dar o seu número, mas eu expliquei que era uma situação especial.
Laércio, hoje com 76 anos e Papai Noel há mais de cinco décadas, logo entendeu de quem se tratava. Era a mãe de uma menina especial de oito anos que, debilitada e deprimida, já não se comunicava com ninguém. Desde o dia anterior, quando fora recepcionada calorosamente pelo Papai Noel do shopping – “Mas que lindo esse teu trenó, guria. Abram espaço!” –, ela havia voltado a conversar normalmente. A ligação era um agradecimento e uma convocação para que ele visitasse a família no dia 24:
– Senhora, eu não posso. São mais de 10 casas que eu visito há anos nesta noite. Não tenho como desmarcar com nenhuma.
– Papai Noel, o senhor não está entendendo. A estimativa de vida da minha filha é de dois meses.
Laércio engasgou:
– Às 22h está bom para vocês?
Papai Noel das 10h às 16h no BarraShoppingSul, Laércio conta a história com os olhos ensopados para dar um exemplo do tipo de experiência que passam os Bons Velhinhos nas poltronas dos shoppings de Porto Alegre e Região Metropolitana.
Ao longo de uma semana, GaúchaZH conversou e conviveu um pouco com sete deles em quatro estabelecimentos. Conheceu homens completamente diferentes – no Barra, por exemplo, o pequeno e agitado Laércio, de 1m70cm e 78 quilos, dá lugar às 16h a Felipe Pschara, um homenzarrão de 1m87cm e 135 quilos com pinta de roqueiro. Mas todos encaram a missão não como um ator vivendo um papel, mas como misto de psicólogo, padre e confidente que se tornam assim que vestem vermelho.
– É engraçado, porque a seleção costuma ser pela aparência. Mas, depois, a gente aprende que exige um monte de coisa. Não adianta ter barba e não ter paciência – resume Tomaz Velasquez, 69 anos, do Praia da Belas.
Quase todos começaram por acaso. Tomaz viu o cabelo e a barba branquearem da noite para o dia quando a mulher faleceu, há 15 anos. O convite para ser Papai Noel veio em boa hora para recuperar a alegria. Já o seu colega no Praia de Belas, José Vicente Pokorski,
62 anos, começou de improviso em 2001 quando o Papai Noel contratado pela sua empresa literalmente se borrou de medo de subir em um helicóptero.
– No ano seguinte, já ofereceram direto pra mim. Trabalho no final de ano, mas, para as crianças da minha vizinhança, sou o Papai Noel e pronto. O ano inteiro. É muito engraçado quando enxergam a minha roupa no varal – diverte-se.
A partir daí, cada um estabelece seu código de ética, com alguns pontos em comum. Todos os Papais Noéis, por exemplo, vetam listas longas de presentes. Alguns alegam falta de espaço no trenó, outros a necessidade de atender a outras crianças. Também é unânime o recebimento de mamadeiras e chupetas, mas há os que pegam com a mão direita e devolvem aos pais com a esquerda, para possíveis crises de abstinência futuras. Outras regras são mais particulares.
– Quando pedem arma de brinquedo, digo que o Papai Noel não gosta. Alego que alguém pode achar que é de verdade e machucá-las – diz Felipe, 62 anos, que também é motorista de aplicativo. – As crianças continuam me reconhecendo como Papai Noel o ano todo. Digo que estou disfarçado para ver se elas estão se comportando.
Reduções na lista de pedidos, negociações sobre melhoras no boletim escolar ou no comportamento em casa são situações que os Papais Noéis ouvem aos montes e tiram de letra. Porém, não raro escutam pedidos ou meros desabafos muito mais complicados. Certa vez, uma adolescente se aninhou debaixo da barba de Felipe e contou ter tentando suicídio. Seu desejo de Natal era não ser internada.
Nelson Estevão Tibursky, 66 anos e Papai Noel no Park Shopping Canoas, ensopa a barba de lágrimas do alto dos seus 1m98cm ao contar de um menino que pediu, em vez de presente, ajuda para encontrar o pai sumido havia seis anos.
– Quando tu lê uma cartinha dessas, faz o quê? Fiz o mínimo que eu podia. Peguei o endereço e respondi. Escrevi de coração aquilo que eu achei que poderia fazer ele se sentir melhor – conta.
Embora o reforço financeiro de final de ano seja bem-vindo, situações assim fazem com que os Papais Noéis invariavelmente se engajem em alguma atividade beneficente. No ano passado, Nelson escolheu 12 cartas com pedidos de material escolar e atendeu. Além disso, faz kits de presentes e visita os bairros mais pobres de Canoas a caráter. Felipe prefere fazer o mesmo em asilos, enquanto Laércio gosta de mobilizar forças-tarefas para os presentes mais complicados das suas cartinhas. Uma das últimas façanhas foi conseguir um colchão para uma criança que havia perdido o seu em um incêndio.
– Até gosto quando cai essas broncas pra mim, porque, se é comigo, resolvo.
É Papai Noel, ora bolas.
Censo natalino
Abril é o mês em que os pretendentes a Noel precisam começar a cultivar a barba para ter um rosto cheio o suficiente perto do Natal. A maior parte deles, todavia, mantém ao menos parte da barba o ano todo.
Entre 1m67cm e 1m98cm mediram os Papais Noéis desta reportagem. O peso também varia bastante: com os mesmos 1m87cm, por exemplo, há Papais Noéis de 99 quilos e 135 quilos.
Até 10 visitas fazem os Papais Noéis na noite de Natal. Em média, são seis visitas entre 19h e meia-noite, mas há Papais Noéis que começam a visitar famílias às 16h e vão até 1h da manhã.
85 anos tem o Papai Noel mais velho desta reportagem, Clóvis Cantonini, do Shopping Total. O mais experiente, todavia, é Laércio, do BarraShoppingSul, que tem 76 anos e 53 de profissão. Felipe Pschara, do BarraShoppingSul, e José Vicente Pokorski, do Praia de Belas, são os garotos, com 62 anos.
Os 10 mandamentos dos Papais Noéis
O que os Papais Noéis que trabalham em centros comerciais não podem esquecer, conforme Felipe Verdade, da Hannah Marketing Profissional, empresa que media a contratação em quatro shoppings da Capital.
1 Papai Noel é um só
Dois Papais Noéis nunca podem ser vistos ao mesmo tempo no shopping, para não estragar a fantasia das crianças. Quando termina o turno de um, ele é conduzido até uma salinha, e só então outro Papai Noel aparece.
2 Papai Noel não dá presente
É vetado ao Papai Noel entregar presentes às crianças a pedido dos pais. A prática é proibida porque outra criança pode ver a cena na fila e ficar na expectativa do mesmo acontecer com ela.
3 Papai Noel é de verdade
A barba do Papai Noel é puxada centenas de vezes por dia. Um puxão na barba branca natural é atestado de que aquele é o Papai Noel de verdade, portanto nunca pode ser falsa. Já o óculos, com frequência, é de mentira.
4 Papai Noel atende a todos
Não é exclusividade das crianças consultar o Bom Velhinho. Idosos costumam pedir, senão presentes, conselhos ao Papai Noel sobre a vida familiar ou até amorosa. Adolescentes também o abordam, embora tímidos.
5 Papai Noel atende a todos, menos mascotes
Algumas famílias se incomodam se o Papai Noel tocar em cães e depois nas crianças, por isso pets são vetados. Alguns shoppings oferecem poltroninhas para os peludos perto do Papai Noel.
6 Papai Noel aceita trocas
O Papai Noel nunca pede bicos, mamadeiras ou fraldas, mas pode aceitá-las se a criança entregar voluntariamente. A orientação é sinalizar se o pai quer receber de volta para eventuais crises de abstinência.
7 Papai Noel não se estressa
Qualquer pedido especial, reclamação ou orientação para quem está na fila do Papai Noel é feito para ou pelas suas assistentes, as “noeletes”. A ideia é que o Papai Noel nunca seja visto discutindo com ninguém.
8 Papai Noel tem todas as respostas
Seguidamente, o Papai Noel enfrenta dúvidas logísticas sobre chaminés, duendes, renas e tudo mais. Cada um elabora suas respostas para o fenômeno, mas elas sempre são dadas.
9 Papai Noel não faz promessas
O bom Papai Noel não promete presentes, e sempre tenta encurtar a lista pretendida pela criança se perceber que ela está muito longa ou muito fora da realidade.
10 Papai Noel precisa ter paciência
Em um final de semana movimentado, até 1,3 mil crianças passam pelo colo do Papai Noel. Paciência e bom humor são os principais pré-requisitos para o posto.
E as renas?
Invariavelmente, os Papais Noéis são questionados pelas crianças sobre seus animais voadores. Veja as respostas-padrão de cada um.
Clóvis Augusto Cantoni, Shopping Total
"De uns tempos pra cá, eu não uso mais renas. Tem muita fiação nas ruas e as renas podem se machucar. Eu uso um caminhãozinho baú."
José Vicente Pokorski, Praia de Belas
"Minhas renas estão na câmara fria do supermercado, por causa do calor."
Tomaz Velasquez, Praia de Belas
"Estão lá no quartel. Os soldados estão cuidando. Alimentando elas, porque, à noite, preciso usá-las para ir embora."
Nelson Estevão Tibursky, Park Shopping Canoas
"As renas não podem ficar aqui porque é muito quente. Elas ficam bem escondidinhas no gelo."
João Manuel Nobre, Park Shopping Canoas
"Estão todas lá em Guaíba. Tem uma fazenda muito grande, então elas ficam por lá. Como eu vou trazer as renas aqui com esse movimento de carro?"
Laércio Roca, BarraShoppingSul
"Aqui não pode entrar rena, sabe por quê? Porque o Ibama está de olho. Os azuizinhos estão cuidando. Então eu deixo elas todas ali perto do Beira-Rio, onde tem uma graminha, que é mais fácil."
Felipe Pschara, BarraShoppingSul
"Estão lá na Islândia. Comendo, ficando bem relaxadinhas, tranquilas. Uma semana antes eu vou lá dar banho nelas, porque elas são bem fedidas, aí eu trago elas pra cá."