Começaram nesta terça-feira (26) as abordagens educativas a flanelinhas, em razão da aprovação da lei que proíbe sua atuação nas ruas de Porto Alegre. Uma equipe formada por guardas municipais, funcionários da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) e do Sine iniciou a conversa com os guardadores de veículos no Parque Marinha do Brasil, orla do Guaíba, Redenção e região do Hospital Mãe de Deus, e há previsão seguir em outros locais durante uma semana.
Os trabalhadores são aconselhados a se dirigir ao Centro de Referência de Assistência Social (Cras) da região Centro, onde ocorrerá o atendimento individualizado.
— A gente tem poucas informações sobre esses grupos. O primeiro desafio é descobrir quem são essas pessoas, para oferecer o que temos — diz Neiva Chaves, articuladora da Fasc.
O Sine deve ofertar cursos profissionalizantes, com duração de 40 horas a 160 horas. Os guardadores que se interessarem também farão cadastro no programa para buscar vagas de emprego, como de servente de obras, auxiliar de limpeza e ajudante de carga e descarga.
Durante as abordagens, um flanelinha foi detido por ser foragido da justiça.
A intenção da prefeitura é, após a publicação da lei e de instruir os trabalhadores, começar fiscalização mais rígida, envolvendo Guarda Municipal e Brigada Militar. Na esfera administrativa, está prevista a aplicação de multa no valor de R$ 300 (autuação em flagrante) e o dobro nos casos de reincidência. No aspecto criminal, aquele que estiver exercendo a atividade será encaminhado para autoridade policial de acordo com a conduta tipificada que pode ser o exercício irregular de profissão, desobediência, extorsão, estelionato, entre outros.
O projeto de lei passou na Câmara Municipal por 19 votos a 14 no dia 18. Ainda está em fase de revisão final no Legislativo e, a partir do momento que for encaminhado ao Paço, Nelson Marchezan terá 15 dias úteis para sancioná-lo.
A lei aprovada não diferencia categorias ou classes de guardadores de veículos: a partir da publicação, a atividade estará proibida no município para todos. O Sindicato dos Guardadores de Automóveis reclama que a lei afeta, especialmente, os 10% que estavam aptos a trabalhar na função em Porto Alegre. Frente a cerca de mil flanelinhas que já atuavam na irregularidade, há apenas uma centena de guardadores sindicalizados.
Juarez Fabiano Assmann, 41 anos, é um deles. Veio de São Sebastião do Caí morar na Capital para trabalhar na função, com a esposa, no primeiro semestre de 2015. No mesmo ano, decidiu se sindicalizar. Diz que sempre lhe incomodou a ideia de trabalhar irregular, mas não sabe o que vai acontecer agora, com a aprovação da lei e a edição de uma medida provisória (MP), pelo presidente Jair Bolsonaro, revogando lei federal que regulamentava a profissão — para vigorar permanentemente, a MP precisa ainda ser apreciada pelo Congresso. Ele questiona:
— Vou ficar na irregularidade? Não me conforta essa ideia. Claro que, se tem um filho pequeno dentro de casa chorando, tu vai fazer isso pra ganhar algum dinheiro, especialmente com esses números astronômicos de desemprego.
Morador da Bom Jesus, Juarez chega a tirar R$ 2 mil por mês na Rua Conceição, no centro da Capital. Trabalha em torno de 12 horas por dia. Ele tem Ensino Superior incompleto: fez faculdade de Teologia em São Leopoldo pelo Prouni, mas, depois que seu filho nasceu, acabou não realizando o estágio e o trabalho de conclusão para alcançar o grau — e já terminou o prazo para se formar dentro do programa de bolsas. Fez Enem há três semanas, na intenção de voltar a estudar.
— Batalho por coisa melhor, sabia que não ia durar para sempre, que um dia poderia surgir algo dessa forma. Só não acho justo tratar isso de uma forma tão simplista. Pegaram as pessoas e botaram todas dentro de um saco.
João Luis de Almeida Abreu começou a trabalhar como flanelinha aos 12 anos, quando perdeu a mãe. Segue na função até hoje: com 56 anos, trabalha em eventos, principalmente na Arena do Grêmio. No final de semana, trabalhou no entorno do Estádio do Passo D'Areia, durante o jogo de São José e Pelotas.
Ele avalia que os guardadores sindicalizados são diferentes dos flanelinhas, ressaltando que os primeiros tiveram os documentos conferidos e os antecedentes criminais, checados. Atesta que no último grupo há elementos "que fazem coisas que até Deus duvida". Mas, para ele, isso deveria ser caso de polícia, e não motivar uma lei para acabar com toda a categoria:
— Sem autorização, ficamos na mesma situação que eles (flanelinhas). Não estamos nem dormindo direito, porque não se sabe o que vai acontecer daqui a alguns dias.
Abreu não quis que seu filho, de 28 anos, seguisse seus passos como guardador, porque a classe é "discriminada e humilhada." Ele sugere que, em troca por espaços para atuação dos regularizados, a categoria faça trabalhos pela comunidade, como limpar e reformar praças:
— Acham que todos são sem-vergonha, mas não é todo mundo, não. Não somos marginais. O Rafão (secretário municipal de Segurança Pública, Rafão Oliveira) tem de ver quem é marginal e quem é trabalhador.
Em defesa da lei, o secretário tem dito que será possível combater outros crimes. Rafão afirma que o setor de inteligência do Gabinete de Gestão Integrada Municipal (GGIM) identificou que as facções estão tomando as ruas por meio de flanelinhas. O secretário argumenta que a situação atual coloca a população em risco.
Maria Ines Cardoso também tem décadas de experiência na função: são quase 25 anos. Vai completar 59 de idade na próxima quarta-feira.
— Esse foi o presente que o Marchezan me deu — lamenta a senhora, que diz que passou a chorar com frequência.
Uma das cerca de 100 guardadoras sindicalizadas, Maria paga aluguel de R$ 400 por uma casa na Lomba de Pinheiro e vai de ônibus ao Centro Histórico para trabalhar como guardadora. Do salário mínimo e pouco que tira por mês, paga o aluguel, as passagens e também comida e internet. Tem feito bolo e torta fria para vender, mas nada que represente grande mudança no orçamento.
— Nunca dependi de ninguém. Saí de casa com 16 anos, tive uma vida difícil, já fui dependente química, de álcool. Larguei tudo e consegui me sustentar guardando carros. Mas qual é o emprego que vou conseguir com 60 anos?
Por meio da Secretaria de Segurança, a prefeitura destaca que a lei "tem por finalidade atender aos anseios da maioria da população da Capital que não reconhece esta atividade como do melhor interesse coletivo, uma vez que esta modalidade de privatização dos espaços públicos realizada de forma unilateral se mostrou abusiva e ofensiva às boas práticas de convívio social".