Se existe um Triângulo das Bermudas — ou buraco negro — onde se escondem os guarda-chuvas perdidos, ele certamente acaba na zona sul de Porto Alegre. Em um imóvel na Rua Francisco do Prado, no bairro Cavalhada, guarda-chuvas deixam a simples função de proteger contra intempéries e foram elevados a um objeto mais nobre desde o início do ano. Em forma de sacos de dormir forrados com cobertores, eles aquecem moradores de rua.
— Ao entregar as capas, ganho sorrisos. Esse é o meu pagamento. Tudo que o dinheiro compra estraga. Uma pessoa dormir aquecida não tem preço — resume a idealizadora da ação Lídia Borges, 40 anos, carinhosamente chamada de Professora Pafúncia pelos quase 500 alunos que atende semanalmente em nove escolinhas da Capital.
A casa da “cientista” é um verdadeiro laboratório de reaproveitamento dos objetos sem condições de uso. Enquanto ela costura os panos nas cobertas, a força-tarefa familiar atua sem parar: o marido recorta as colchas e retira as hastes dos guarda-chuvas entregues por voluntários e a sogra faz o acabamento, importante etapa para manter a vedação da bolsa protetora.
— Minha recompensa é quando a gente entrega. Saber que tem menos um passando frio. Se já se sente frio em casa, não dá para imaginar o que é na rua, que ainda tem toda a umidade — acrescenta.
Como toda história de herói, a professora também tem no seu enredo de vida a superação. A ideia de moldar as capas surgiu quando estava hospitalizada na Santa Casa tratando um câncer de mama.
— Eu fazia radioterapia no Santa Rita (do complexo hospitalar) todas as noites. E notei que vários irmãos dormiam no chão “puro”. Tiramos força do bem. Porque se todo mundo fizer um pouquinho de bem, o mal perde. O mal só tem força quando o bem fica inerte, parado. E não custa. Uma hora e meia da vida, tomando chimarrão, conversando, a gente faz os sacos — relata Pafúncia, sem deixar de dar os méritos da iniciativa a uma reportagem com uma voluntária de São Paulo, de onde tirou a inspiração.
Em média, a “fábrica” gera de três a quatro sacos de dormir por semana.
— Se tivéssemos mais doações, certamente poderíamos chegar ao dobro de sacos. Por isso, precisamos de cobertores, principalmente, para produzir mais — afirma.
Entre as entidades parceiras, está a escola Matias de Albuquerque, na Zona Sul, que fez uma campanha entre pais e crianças e entregou dezenas de guarda-chuvas. Outro local que ajuda com a matéria prima é a Associação dos Funcionárias da Carris (Use), que tem o projeto Quem Tem Fome Tem Pressa, que recolhe e distribui roupas e lanches para a população pobre (a sede da associação fica na Avenida Cubanos, 300, e recebe doações de qualquer espécie).
Na última terça-feira (13), seis sacos foram distribuídos para moradores em situação de rua na região central — apesar de mais de cem guarda-chuvas já terem sido desmontados, oito sacos foram finalizados, já que faltam cobertores. A receptividade de quem recebe é o que deixa o casal mais feliz. O sorriso ao avistar a doação é “cativante” e “gratificador”, define Wagner Rodrigues, 39 anos, marido da professora:
— As pessoas primeiro pensam que são cobertores. Mas depois acham bem legal. Teve um que disse: “Com essa coberta, vou conseguir dormir hoje, porque na noite passada fiquei andando de um lado pro outro pra esquentar".
Além de ajudar os sem-teto, Pafúncia defende que seu trabalho também melhora o planeta:
— Ia tudo para o lixo. Algumas pessoas me perguntaram se eu queria tecido impermeável. Eu não quero. Quero produzir menos lixo, tirar o lixo da rua. Como professora, tenho a função de deixar um mundo melhor — finaliza.