Um dos pontos altos da vida noturna na Cidade Baixa, o final de semana foi de festa interrompida para quatro bares do bairro boêmio de Porto Alegre. Uma operação conjunta da prefeitura, Brigada Militar e Corpo de Bombeiros fechou o Céu Bar + Arte e a Cucko, na Rua General Lima e Silva, o boteco Matita Perê, na Rua João Alfredo, e o Boteko do Caninha, na Rua Barão do Gravataí, por estarem com o Plano de Prevenção Contra Incêndio (PPCI) inadequado.
Alvo das vistorias em razão de denúncias, os estabelecimentos estão longe de serem os únicos com esse tipo de problema. Segundo os bombeiros, apenas 30 das mais de 90 casas noturnas registradas em Porto Alegre estão com a documentação adequada para funcionar (conheça abaixo os tipos emitidos).
— Em dezembro de 2018, das 96 casas noturnas registradas, só 11 tinham alvará. Muitas melhoraram, outras estão em tramitação. É uma mudança lenta, mas já é bem melhor do que em outros tempos — diz o major Ederson Lunardi, chefe da Divisão de Prevenção Contra Incêndios de Porto Alegre.
O alvará é a última instância a ser cumprida para que um estabelecimento funcione de acordo com a legislação. Antes, no caso das casas noturnas, consideradas locais de alto risco pela Lei Kiss, aprovada em 2014, há o PPCI, indispensável para a obtenção do documento. Ou seja, das mais de 90 boates que ingressaram com pedidos de análise ou reanálise do PPCI, apenas 30 poderiam estar de portas abertas — o restante, em tese, teria de esperar a conclusão do processo para poder operar.
Lunardi acredita que o principal motivo para que boa parte das casas demore a obter regularização são as mudanças na recente legislação, alterada em 2016. Com 12 militares para vistoriar e fiscalizar todos os estabelecimentos da cidade (e não somente casas noturnas), os bombeiros focam esforços nas demandas que chegam por denúncias de cidadãos ou convocações de outros órgãos, como o Ministério Público. É principalmente nessas ocasiões que costuma ser punido quem abraça o risco de se manter em funcionamento apesar das pendências.
O que motiva as interdições cautelares, como as realizadas na Cidade Baixa no último fim de semana, é o chamado "iminente risco", quando algum item do estabelecimento coloca em perigo a vida, a integridade física de pessoas ou ameaça o funcionamento da edificação. Nos casos em que isso é detectado, não basta ter alvará. O local é fechado até que o problema seja sanado.
— O fiel da balança é o risco iminente, porque, nesse caso, a lei exige a interdição até que ele seja eliminado. E quem declara se foi eliminado é o órgão que declarou que tinha iminente risco — explica o coordenador de Promoção Econômica da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico (SMDE), Luis Antônio Steiglich.
A falta de itens de segurança, como portas de emergência e extintores de incêndio, está entre os problemas que costumam ser indicados pelos bombeiros. Mas é possível que o risco seja de outra natureza, como produtos vencidos, em geral identificados durante vistorias da Vigilância em Saúde, ou mesmo ruído excessivo, avaliação feita pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Sustentabilidade (Smams). É uma das razões pelas quais, em alguns casos, são privilegiadas visitas conjuntas, com representantes de diferentes órgãos.
Por que fizemos esta matéria?
Uma das lições que a tragédia da Kiss deixou foi a de que locais com grande aglomeração de pessoas precisam estar adequados à legislação vigente. Para que eventos como aquele jamais voltem a se repetir, além da fiscalização por órgãos competentes, a imprensa também cumpre papel importante. Ao tomar conhecimento da ação conjunta de prefeitura, Brigada Militar e Corpo de Bombeiros, no último final de semana, GaúchaZH procurou as autoridades para repercutir o fato. Acabamos descobrindo que menos de um terço das casas noturnas registradas em Porto Alegre possui alvará para funcionar. Dada a relevância do tema, decidimos fazer esta matéria.
Como apuramos esta matéria?
Motivados pelos questionamentos de leitores, editores e repórteres a respeito da operação que fechou os bares, e a partir dos critérios utilizados para as interdições, falamos com os agentes diretamente envolvidos na ação de sexta-feira. Contatamos a Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SMDE), que representa a prefeitura, com questionamentos a respeito da operação de vistoria, e fomos atendidos pelo coordenador de Promoção Econômica da pasta. Também solicitamos dados sobre interdições de estabelecimentos nos últimos anos. Pedimos aos bombeiros que falassem sobre os critérios utilizados para determinar a existência ou não de risco nos locais vistoriados, explicando, então, o que motivou a interdição dos bares e casas noturnas. Também questionamos a entidade sobre o procedimento para a obtenção do PPCI. Procuramos ainda os donos dos estabelecimentos interditados para que pudessem dar a versão deles sobre o ocorrido no fim de semana. Apenas um dos três empresários contatados quis falar sobre o assunto.
Nos bares visitados na última sexta-feira, problemas como as dimensões da porta de saída (caso da Cucko), alvará inexistente (Céu Bar + Arte) ou em desacordo com a atividade exercida (Matita Perê), público acima da capacidade e extintores despressurizados (Boteko do Caninha), todos considerados de iminente risco, motivaram as interdições. Outras três casas visitadas durante a operação, e que não tiveram os nomes divulgados, não apresentaram problemas graves e seguem em funcionamento.
Cidade Baixa teve outros três bares fechados em fevereiro
Bairro conhecido pela concentração de bares e casas noturnas, a Cidade Baixa teve pelo menos outros três estabelecimentos interditados neste ano. Em fevereiro, uma ação resultou no fechamento das casas noturnas Preto Zé, Margot e Nuvem, na Rua João Alfredo.
Poder público e bombeiros destacam que há ações em outros bairros — questionada, a prefeitura disse que não tem um número consolidado das interdições de bares e casas noturnas realizadas em 2019. Mas o histórico de problemas com os moradores – ainda que na maior parte das vezes provocados por situações alheias aos bares, como aglomerações nas ruas e calçadas – faz com que a Cidade Baixa acumule denúncias e, por consequência, tenha vistorias mais frequentes.
Proprietário da Cucko, Antonio Gomes, lamentou o fechamento da casa, que teria sido denunciada por gerar ruído. Embora acredite que a origem das reclamações seja a movimentação externa à boate, comprometeu-se, anos atrás, a lavar as calçadas e limpar a sujeira da via depois das festas. Diz que buscava a atualização do PPCI quando o local foi alvo da vistoria.
— Temos um PPCI em reanálise. Está irregular, óbvio, mas, enquanto não nos dão retorno, não podemos executar as alterações. Os bombeiros foram lá sabendo disso. Eles se sensibilizaram, nos prometeram prioridade, e agora vamos correr com isso — diz o empresário.
Em nota publicada no Facebook, o Matita Perê disse que irá trabalhar para "reabrir o mais breve possível". No fim de semana, também em nota, os proprietários do Céu Bar + Arte disseram que estão fazendo as adequações solicitadas pela prefeitura e pelo Corpo de Bombeiros. A reportagem não conseguiu contato com o proprietário do Boteko do Caninha.
Motivada pela tragédia da Kiss, ocorrida em 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria, que matou 242 pessoas, a lei que leva o nome da boate que pegou fogo prevê que todos os imóveis estejam dentro das normas até 27 de dezembro deste ano. Por serem consideradas estabelecimentos de alto risco, casas noturnas têm de se adequar imediatamente.
De acordo com os bombeiros, o prazo para a análise de documentação e vistoria de estabelecimentos que entram com solicitação junto ao órgão é de 90 dias, mas pode se estender em razão de eventuais ajustes nos projetos, que precisam ser autorizados pela corporação para serem executados. Estabelecimentos interditados durante as vistorias extraordinárias ganham prioridade na tramitação dos processos de regularização.
Veja alguns documentos emitidos pelos bombeiros
Certificado de Licenciamento do Corpo de Bombeiros (CLCB)
Para edificações de até 200 metros quadrados, exige o cumprimento de cinco requisitos básicos: saídas de emergência, extintores de incêndio, iluminação, sinalização e treinamento de pessoal. É declaratório, feito pela internet e não tem prazo de validade.
Plano Simplificado de Prevenção Contra Incêndio (PSPCI)
Para edificações entre 200 e 700 metros quadrados. Se o risco de incêndio for considerado baixo, segundo os critérios estabelecidos pela legislação, é declaratório, feito pela internet e não precisa de responsável técnico nem é alvo de vistoria. Edificações com riscos médio e alto precisam de um responsável técnico, mas não são vistoriadas.
Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio (PPCI)
Para edificações maiores de 750 metros quadrados ou que tenham risco específico, situação em que se enquadram as casas noturnas. Exige mais itens do que os dois primeiros, projeto assinado por um responsável técnico e vistoria dos bombeiros. O prazo de tramitação é de 90 dias e, no caso das casas noturnas, a validade é de dois anos.